Lobisomens, vampiros, assombrações e mulas sem cabeça podem ter apavorado muita gente durante séculos, mas a nenhuma dessas figuras foi atribuído um desastre econômico. Nem mesmo a personagem histórica de Vlad III, príncipe da Valáquia, também conhecido como conde Drácula, o Empalador, foi associada ao descalabro fiscal, à estagnação produtiva, a um surto inflacionário ou à demolição de alguma empresa estatal. Ao contrário: era respeitado pela devoção à sua terra, pela coragem e pela severidade na punição dos crimes cometidos por seus, digamos, companheiros. Muito natural, portanto, ver o mundo mais uma vez curvar-se diante do Brasil, primeira economia, e das grandes, submetida a demolição por uma personagem lendária, a administradora Dilma Rousseff, às vezes descrita como gerentona.
O criador dessa lenda pode ter sido um gozador, mas a piada foi levada a sério por uma porção de incautos e até espalhada como verdade por muitos meios de comunicação. Os fatos claramente negaram o mito nos últimos três anos e três meses. Ainda continuam negando, a cada nova revelação sobre as consequências da política econômica – as perdas da Eletrobrás e da Petrobrás, por exemplo, e os estragos no Tesouro. O espetáculo poderia até ser engraçado, mas tem custado bilhões e ninguém sabe quanto ainda poderá custar.
A persistência da inflação, uma das derrotas mais notáveis da política econômica, virou assunto de um complexo estudo comparativo divulgado nesta semana pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). O trabalho inclui a análise de números de 26 países com regime de metas. O tema é especialmente importante, informa-se logo na apresentação, porque a persistência eleva o custo, em termos de produto, do esforço para levar a inflação até a meta.
Em outros países, incluídos vários emergentes, a alta de preços arrefeceu e os repiques se tornaram menos fortes depois de implantado o regime. O Brasil tem sido uma exceção e o trabalho é encerrado com a indicação de algumas explicações possíveis. Uma delas é a permanência de uma forte indexação. Outra hipótese aponta para uma baixa confiança dos participantes do mercado na eficácia da política monetária – ou na disposição das autoridades monetárias responder adequadamente aos choques de preços. Uma resposta forte é indispensável para conter os efeitos de segundo round desses choques e limitar, portanto, seus desdobramentos.
O presidente do Banco Central (BC), Alexandre Tombini, chamou a atenção precisamente para essa função da política, ao mencionar, em depoimento no Senado há poucos dias, o choque dos preços agrícolas e a necessidade de restringir seus efeitos ao curto prazo. O aumento de juros anunciado na quarta-feira, depois da reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), deve ser parte desse esforço. Mas esse foi o nono aumento a partir de abril de 2013 e, até agora, o remédio parece ter sido insuficiente – mesmo levando em conta o efeito retardado da política de juros. De toda forma, o longo período de afrouxamento da política monetária, entre o fim de agosto de 2011 e abril do ano passado facilitou o recrudescimento da inflação. Mas a presidente Dilma Rousseff encontrou nessa política uma chance para se vangloriar de haver derrubado os juros no Brasil. Foi mais um numa longa série de erros.
O relaxamento dos juros foi apenas um dos equívocos da política anti-inflacionária. Os demais foram cometidos sem a participação do BC. O novo prejuízo da Eletrobrás, R$ 6,3 bilhões em 2o13, é mais uma consequência da administração tsunâmica implantada pela presidente Dilma Rousseff no governo federal. A contenção de tarifas imposta às empresas de eletricidade custou e continua custando um dinheirão ao Tesouro e às empresas do setor.
Os R$ 8 bilhões previstos no Orçamento da União para compensar as empresas serão insuficientes e será necessário levantar dinheiro de outras fontes. Além disso, será preciso elevar os preços para os consumidores nos próximos dois anos, porque o represamento das tarifas serviu somente para maquiar a inflação e apenas multiplicou os problemas. O aumento das contas em 2015 deverá ficar entre 8% e 9%, segundo noticiou o Estado.
Não está clara, no entanto, a arrumação necessária para compensar o estrago acumulado. Falta levar em conta, entre outros, um detalhe publicado na sexta-feira pelo Valor. Segundo cálculo apresentado por dois minoritários do Conselho de Administração da Eletrobrás, a empresa deixou de arrecadar R$ 19 bilhões em 2013. A perda resultou do esquema imposto pelo governo em dezembro de 2012, quando foram definidas as normas para renovação das concessões.
No caso da Petrobrás, ainda falta uma boa estimativa dos danos acumulados na gestão petista. A lista dos erros é enorme e inclui a compra das instalações de Pasadena, a construção da refinaria Abreu e Lima e as perdas causadas pelo controle de preços, mas esta lista é provavelmente muito incompleta. Uma boa CPI poderia ajudar no esclarecimento das perdas e de como ocorreram, mas o governo tem feito – e deverá fazer – um enorme esforço para impedir a elucidação de uma das histórias mais escandalosas da política brasileira.
Incompetência é apenas parte da explicação do desastre das estatais, do estrago nas contas públicas, da persistência da inflação, da estagnação econômica e dos erros cometidos na política industrial. A gestão de baixa qualidade reflete igualmente uma certa forma de ocupação da máquina governamental. O PT ocupou, loteou e usou o governo, em seus vários níveis, como se, por direito de conquista, se houvesse apropriado legitimamente desse aparelho. Se nada mais puderem fazer, os cidadãos inconformados talvez possam ainda recorrer a um expediente: perguntar se a tão falada função social da propriedade vale também para a máquina transformada em patrimônio privado pelo grupo instalado no poder.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 05/03/2014
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