O dia 7 de abril de 2018 entrará para a história brasileira como o dia em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou diante de uma multidão: “Eu não sou um mais ser humano, sou uma ideia”. Para, poucas horas depois, descobrir ser tão humano e estar tão sujeito às leis quanto qualquer um de nós – e ser levado sob custódia da Polícia Federal (PF) para a cadeia em Curitiba.
Acabou o teatro. Lula está preso. Por quanto tempo? Difícil dizer. Por ao menos dois anos, se tiver direito à progressão de pena e não obtiver nenhum habeas corpus por motivo de saúde ou coisa parecida. Por apenas quatro dias, se o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir na próxima quarta-feira as duas ações que podem rever a recomendação da Corte sobre as prisões em segunda instância.
A semana foi longa.
Com direito a sessão de onze horas no STF, mandado de prisão surpresa do juiz Sérgio Moro, habeas corpus negado no Superior Tribunal de Justiça (STJ), nova reclamação negada no STF, manifestação na porta do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, “showmíssio” – a mistura de missa, show e comício – de despedida, o discurso patético de um criminoso por quase uma hora, agressões da “militância” a pelo menos seis jornalistas e um furdunço até o condenado se entregar à Polícia (PF).
Mas a batalha não terminou.
O ministro Marco Aurélio Mello pretende levar ao plenário do STF – “em mesa”, como o jargão do tribunal define os julgamentos fora da pauta – as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44, que pedem do tribunal uma decisão definitiva a respeito do momento em que os condenados começam a cumprir a pena.
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A ministra Rosa Weber, voto decisivo para negar o habeas corpus a Lula na última quarta-feira, já se disse contrária ao entendimento em vigor, que permite o cumprimento após a decisão da segunda instância. Votou contra Lula apenas em respeito à decisão do plenário de dois anos atrás, como tem feito no julgamento de todos os habeas corpus que julga individualmente ou na Primeira Turma do tribunal.
Se Rosa votar de modo coerente com sua visão, todos os presos depois de uma decisão de segunda instância terão direito a recorrer em liberdade. Lula é apenas um deles. Também diminuirá o incentivo para que réus fechem acordos de colaboração premiada. A Operação Lava Jato, que atingiu seu ápice na prisão de Lula, estará fadada a fenecer. Poderá ser esse, ao fim, o resultado inesperado do evento que galvanizou o país nos últimos dias.
A semana foi longa, mas a batalha não terminou.
O segundo desdobramento é político. Lula ateou fogo em seus seguidores. Sabe que, em virtude da Lei da Ficha Limpa, mesmo que venha a ser solto, são remotíssimas as chances de que sua candidatura seja aceita pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em seu discurso sobre o carro de som em São Bernardo, apontou de modo claro seus candidatos caso não possa concorrer. Ninguém do PT, mas Guilherme Boulos, do PSOL, e Manuela D’Ávila, do PCdoB.
Na retórica clássica do “nós” contra “eles”, inflamou seus acólitos ao disparar agressões verbais a Moro, ao Ministério Público (MP) e à imprensa. “Não os perdoo por ter passado para a sociedade a ideia de que eu sou um ladrão”, afirmou. “Eles não sabem que o problema deste país não chama-se (sic) Lula. O problema deste país chama-se vocês, a consciência do povo, o PT, o PCdoB, o MST, o MTST. Tem muita gente. Tem milhões e milhões de Lulas, de Boulos, de Manuelas, de Dilmas Rousseff pra andar por mim. Não adianta tentar acabar com as minhas ideias, elas já estão pairando no ar e não tem como prendê-las.”
Bradou inocência: “Nenhum deles dorme com a consciência tranquila da honestidade, da inocência que eu durmo”. Desfraldou bandeiras retóricas previsíveis e mendazes: “Não querem o Lula porque, na cabeça deles, pobre não pode andar de avião, pobre não pode fazer universidade, pobre nasceu, segundo a lógica deles, para comer e ter coisa de segunda categoria. O sonho de consumo deles é a fotografia do Lula preso”.
Ironizou sua própria condição de criminoso condenado: “Este crime eu cometi. Eu cometi e é esse crime que não querem que eu cometa mais. É por conta desse crime que já tem uns dez processos contra mim. Se for por esse crime, de colocar pobre na universidade, negro na universidade, pobre comer carne, pobre comprar carro, pobre viajar de avião, pobre fazer sua pequena agricultura, ser microempreendedor, ter sua casa própria. Se esse é o crime que cometi, vou continuar sendo criminoso”.
Desmereceu o trabalho dos juízes e procuradores da Operação Lava Jato, para depois dizer que apoiava a iniciativa de combate à corrupção: “A Lava Jato, se pegar bandido, tem que pegar bandido que roubou e prender. Todos nós queremos isso. Todos nós a vida inteira dizíamos, só prende pobre, não prende rico. Todos nós dizíamos. Eu quero que continue prendendo o rico”.
Defendeu uma nova Constituinte e a regulação dos meios de comunicação, por que se considera perseguido. “Quanto mais eles me atacam, mais cresce minha relação com o povo brasileiro”, disse. Até recorrer à eterna falácia de usar sua popularidade e sua carreira política como argumento para reivindicar a inocência: “Sairei desta maior, mais forte, mais verdadeiro e inocente. Quero provar que eles é que cometeram um crime, um crime político de perseguir um homem que tem mais de 50 anos de história”.
Voltou ao local do início de sua carreira, o Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo, para um discurso que pode muito bem ter representado sua despedida. Citou de memória seu número de inscrição, relembrou as greves de 1979 e 1980 e fez questão de chamar pelo nome cada “companheiro” que reconhecia no palco.
Lula parece mesmo acreditar que é perseguido por suas ideias ou por ter feito um governo voltado para os pobres, aqueles que, nas suas próprias palavras, “precisam do Estado”. A verdade é que ele foi condenado não por algo que tenha feito pelos pobres, mas pelo que recebeu dos ricos, pelos favores da empreiteira OAS, que talvez precisasse ainda mais desse tal Estado – num processo repleto de provas e depoimentos, com pleno direito de defesa, cuja sentença foi agravada pelo Tribunal Federal Regional da 4ª Região (TRF-4).
Lula, hoje, não passa de um criminoso condenado e preso por corrupção e lavagem de dinheiro. Mas ele tem razão num ponto: suas ideias não desaparecem com sua prisão. Alguém carregará suas bandeiras nas eleições de outubro. A disputa política se estenderá para além da jurídica.
A semana foi longa, mas a batalha está longe, bem longe, de ter terminado.
Fonte: “G1”, 07/04/2018