Sua voz clara e cartesiana e seus olhos faiscantes não vacilaram nunca. Salvo quando pedimos uma opinião concreta sobre as políticas da presidente argentina, Cristina Kirchner. Foi então quando seu tom baixou e seus olhos se apequenaram. Era a única pergunta que não queria responder. E não porque não tivesse formada uma ideia cabal sobre o kirchnerismo, mas sim por pura cortesia: a presidente interveio para que os “intelecutais K” não o censurassem na Feira do Livro de Buenos Aires – em março, um grupo pró-Kirchner tentou impedi-lo de abrir o evento, que começa nesta quarta-feira e vai até 9 de maio – e não seria cavalheiresco de sua parte criticá-la tão cedo. Igualmente, meia hora depois de nos despedirmos no inexpugnável e elegante 23º andar do hotel Sheraton, o escritor peruano Mario Vargas Llosa responderia a essa pergunta com um gesto: brindando num coquetel com alguns dos principais dirigentes da oposição. E recomendando a (deputada da oposicionista Coalizão Cívica) Patricia Bullrich que tratassem de caminhar unidos: “Não façam o mesmo que no Peru”.
Também não se privou de se referir aos que questionaram se poderia falar de política na Feira. Foi quando disse: “É triste que intelectuais, colegas que sofreram com a censura, a pratiquem”. Nem se esquivou de falar do liberalismo: “Uma das grandes vitórias da esquerda mais dogmática consiste em que a palavra liberal, que é bonita porque está associada à liberdade, tenha se convertido numa palavra ruim”. Visto de perto, o Nobel de Literatura é simplesmente um brilhante e gentil homem de 75 anos resignado a ser Vargas Llosa. Não escolhe os temas literários, são eles que misteriosamente o elegem. Não escolhe defender apaixonadamente as ideias do liberalismo puro; são sua teimosa honestidade intelectual e seu compromisso político que o afastam do claustro do escritor e o empurram ao perigoso mundo das ideias.
Sua vocação jornalística é surpreendente. Fala com ardor de como pensa e redige seus célebres artigos de sábado. É o mesmo ardor que empresta a seus livros. E sua última novela, “O sonho do celta” (que será lançado no Brasil no fim deste mês, pela editora Alfaguara), é acima de tudo uma reportagem. Como seu amigo Tomás Eloy Martínez, Vargas Llosa concebe o jornalismo como uma arte maior, e o encanta usar esse híbrido de investigação rigorosa e ficção conjectural para fazer literatura e chegar à “verdade verdadeira”, ou seja: a verdade ambígua. Sua novela trata, subterraneamente, da construção de um nacionalista. Vargas Llosa detesta o nacionalismo, e no entanto escreve uma novela onde exalta um anticolonialista que se transforma e se perde nas patologias do nacionalismo irlandês. Um herói imperfeito e trágico.
La Nación: Em “O sonho do Celta” se misturam como nunca antes seus dois ofícios de escritor e jornalista. É uma novela política, biográfica, onde o documental e o jornalismo têm muita importância.
Mario Vargas Llosa: É verdade.
O senhor buscou isso?
Vargas Llosa: Não, resultou assim. Fui ao Congo, por exemplo, porque é uma realidade completamente desconhecida para mim e queria me familiarizar com o mundo por onde o protagonista, Roger Casement, movimentou-se. E me encontrei com uma problemática atual tão terrível que deriva em certa forma dos problemas que Casement documentou em seus informes dos séculos XIX e XX. Por causa disso, em certos capítulos a novela ganhou forma de reportagem e isso não foi premeditado.
A reportagem e a crônica como gênero cada vez se tornam mais importantes na literatura?
Vargas Llosa: A reportagem bem feita é uma forma de ficção, só que ela está mais perto da realidade que as ficções absolutas. Uma reportagem bem feita é uma construção que se parece muito com uma novela, um conto, um relato. E as grandes reportagens, de algum modo, podem ser incorporadas à ficção, ainda que contem coisas verdadeiras.
Como o senhor chegou a este caso?
Vargas Llosa: Estava lendo uma nova biografia de Joseph Conrad, escritor que admiro imensamente, e descobri que a primeira pessoa que ele conheceu quando viajou ao Congo como capitão de barco foi Casement, que já estava lá há oito anos. E uma amizade se estabeleceu entre eles. Foi Casement quem abriu seu olhos de Conrad para o que aconteceia no Congo. Depois vi as cartas de Conrad em que ele mesmo admitia que sem Casement jamais teria chegado a escrever “O coração das trevas”. Fiquei muito intrigado com o personagem, mas sem intenções literárias. Só tinha curiosidade de me informar sobre ele. Descobri que havia estado muito tempo na maçonaria peruana, que havia redigido textos terríveis sobre as condições dos indígenas nos seringais de Putumayo. E então me dei conta de que havia tomado notas para uma novela.
Nota-se que o senhor aprecia muito a investigação.
Vargas Llosa: Gosto muito. É uma aventura tão grande como a de escrever. Viajar, ler coisas sobre ele, escutar testemunhos, se é possível entrevistar pessoas, mas todo esse trabalho, às vezes muito minucioso, não é em busca de uma verdade, não é o tipo de investigação de um historiador. É para chegar a sentir o ambiente que quero inventar. É viver a ficção que quero escrever.
O senhor fez novelas documentais e outras muito intimistas. Se tomarmos cada um de seus livros como peças de um quebra-cabeças, que imagem formaria?
Vargas Llosa: Nunca planejei a passo largo minha vida de escritor como outros colegas que, desde o início, já sabiam que iam fazer pelo resto de suas vidas. Os temas foram vindo ao meu encontro e escrevi sobre assuntos muito distintos e usando técnicas diferentes. E o que mais gosto na literatura é esse elemento casual, espontâneo, que acompanha muito o trabalho estritamente literário. Esse trabalho eu o faço de maneira muito sistemática, disciplinada, mas a maneira como ele se constrói depende muito do casual.
Tanto “A festa do bode” (2000) como “O sonho do Celta” dialogam com dois livros argentinos, “Santa Evita” e “La novela de Perón”, por sua maneira de fundir investigação e imaginação?
Vargas Llosa: Tenho lembranças magníficas de “Santa Evita”. Eu a li num verão quente, argentino. Conheci Tomás Eloy Martínez (autor dos dois livros) quando era jornalista e trabalhava para “Primera Plana”. Fomos muito amigos. “Santa Evita” é seu grande livro. “La novela de Perón” é excelente, mas em “Santa Evita” ele encontrou uma maneira de convertar em magnífica ficção uma reportagem que também era magnífica.
O senhor também teve uma grande amizade com outro escritor argentino: Julio Cortázar.
Vargas Llosa: Sim, foi um grande amigo. Eu o conheci logo que cheguei a Paris, e nos vimos muitas vezes durante os anos 60, ainda que, por essa época, Cortázar fosse muito reservado, um homem que defendia sua intimidade, menos nos últimos anos da década. Ele e Aurora não se expunham ao público, mas eu os apreciava muito: escutá-los falar era deslumbrante pela inteligência, humor, cultura. Mas então Julio mudou completamente. Quando tinha de 55 a 60 anos, sua transformação foi total, ele se converteu num personagem público que falava de política, o que coincidiu com sua separação de Aurora. Antes não o fazia porque tinha um grande desprezo pela política. Depois virou uma espécie de jovem militante, recolucionário, mas nossa relação não foi afetada, ainda que tenhamos tido ideias muito diferentes sobre Cuba, por exemplo.
Vocês conversavam sobre política?
Vargas Llosa: Sim, mas Julio era como um jovem que falava de política com uma grande ilusão e generosidade, e também com uma grande inocência. Ele nunca conheceu essa trama suja, torcida, que tem a política, onde se mostra o pior que tem o ser humano. Não era um ideólogo. Lembro de tê-lo escutado dizer: “Leio as coisas de política, mas é impossível, em meia página me distraio”. Isso o salvava, nunca chegou a ser um intransigente nem fanático, sempre foi muito lúcido. E nessa última etapa creio que ele foi mais feliz, mas menos original como escritor. Quando ele encontrou essa felicidade, tornando-se de esquerda, um pouco hippie, sua literatura empobreceu, perdeu mistério.
Com que colegas a ideologia foi um fator de separação?
Vargas Llosa: Com alguns foi de ruptura. Eu me distanciei de muita gente por causa de Cuba, foi como uma espécie de guerra civil (risos). Eu era muito amigo de Mario Benedetti, mas nos distanciamos. No final, nos reencontramos com muita cordialidade. Mas foi espantoso, as ideologias criavam fronteiras, umas inimizades irreconciliáveis.
Agora acontece o mesmo?
Vargas Llosa: É que as ideologias hoje foram à merda, não?
Mas e o populismo, não? E se vê hoje como uma ideologia.
Vargas Llosa: Mas essa é uma prática muito antiga. Uma prática na qual os políticos têm buscado êxito imediato. E o populismo é isso: sacrificar o futuro em nome de um presente que te dá popularidade. Hoje existem formas mais elaboradas, mas o populismo foi usado pelas esquerdas, pela direita, pelas ditaduras… É uma doença da política, mas não se pode chamar ideologia. Ideologia é uma espécie de religião laica que dá uma resposta completa para tudo e que, como as religiões, estabelece cânones, é uma forma de fanatismo laico.
O que o senhor sente ante a evidência de que na Argentina há pessoas que não querem que se fale de política?
Vargas Llosa: Me dá pena. É triste que intelectuais, colegas que sofreram com a censura, a pratiquem. Me entristece, me desconcerta… Na América Latina temos padecido em demasia as exclusões e os endurecimentos forçados para crer que isso pode resolver problemas ou que pode ser uma conquista política.
Isso tem acontecido em outros países da América Latina?
Vargas Llosa: Não. Houve governos que não me deixaram entrar, mas (países em) que colegas tenham pedido que eu não fale nada além de literatura nunca me ocorreu. Foi um caso puramente político. (Em março, intelectuais ligados à presidente Cristina Kirchner, de quem Vargas Llosa é crítico, tentaram impedir que ele participasse da abertura da 37ª Feira de Livros de Buenos Aires, alegando que só tem palavras duras para os governos populares latino-americanos. Kirchner foi em sua defesa e endossou sua participação)
Acredita que os militantes K (ligados a Kirchner) vão obedecer à ordem da presidente e deixá-lo falar na Feira do Livro?
Vargas Llosa: Vamos ver. Na quinta-feira (dia seguinte à abertura da feira) tiramos a prova.
Pesa este mote de “ideólogo da direita” que lhe impuseram?
Vargas Llosa: A mim não importa nem um pouco (risos). Isso se disse como uma espécie de exorcismo. E já perdi o medo dos exorcismos. Quando era jovem tinha medo, não gostava que me dissessem que era de direita.
Ou seja, agora não lhe importa que o qualifiquem assim.
Vargas Llosa:Não. Para algumas coisas não sou de esquerda, sou de direita. As coisas em que acredito eu explico, escrevo, me pronuncio frente aos acontecimentos concretos. Se isso tem uma etiqueta, que a ponham.
Inclusive, dá a sensação de que essas críticas o motivam mais.
Vargas Llosa: É preciso reagir diante dos lugares comuns se você quer que a ideologia não seja uma inquisição permanente. Desgraçadamente, a inquisição nos fez muito dano na história, sobretudo na América Latina. E as inquisições políticas e religiosas precisam ser combatidas. Precisamos criar um mundo onde seja possível o diálogo entre adversários, entre gente que pensa diferente.
A palavra liberal ficou ligada na Argentina à década de 90, e portanto aos graves problemas com os bancos e as empresas.
Vargas Llosa: É uma das grandes vitórias da esquerda mais dogmática: que a palavra liberal, uma palavra linda, associada à liberdade, tenha sido convertido em uma palavra ruim. Liberal é um amante da liberdade. Quer dizer tolerância, a possibilidade de aceitar estar errado. Quer dizer democracia, defesa dos direitos humanos. Defesa do indivíduo frente ao Estado… O liberalismo é a melhor tradição da Humanidade e é terrível que tenha sido deformada até ter uma conotação puramente econômica e que, além disso, em muitos casos está totalmente errada.
Por que?
Vargas Llosa: Porque não é verdade que o liberalismo seja simplesmente uma doutrina de ordem econômica que está disposta a sacrificar, por exemplo, a liberdade política em nome da liberdade econômica. Nenhum liberal defende coisa semelhante. A liberdade é um todo que deve organizar todos os níveis do social, desde a cultura. E o liberalismo é uma fonte de grandes progressos no campo político e nos direitos humanos. O liberalismo não é uma ideologia, é uma doutrina que tem princípios dentro dos quais cabem matizes enormes: basta ir a um congresso para ver que estão mais divididos que os trotskistas. Então dizer “liberal” não define uma pessoa. Sim, é um triunfo da esquerda ter conseguido demonizar esta palavra.
Mas, além da esquerda, há o fato de que muitas ditaduras na América Latina tenham adotados políticas liberais afetou gravemente o liberalismo.
Vargas Llosa: Bom, mas qualquer liberal sabe que a liberdade não é divisível: a liberdade econômica sem a liberdade política não existe. E se fracassaram é porque não havia liberdade. Há liberais que sofrem dessa perversão de crer que a liberdade econômica é a única que importa. Nenhum pensador liberal disse isso. São os marxistas que acreditam nisso, que a economia resolve tudo.
O que representa, hoje, ser de esquerda ou de direita?
Vargas Llosa: Hoje é cada vez mais difuso dar um conteúdo a esses conceitos, sobretudo porque temos na América Latina, por sorte, uma esqueda que, apesar de se dizer socialista, é social-democrata: crê na democracia, no mercado, na empresa privada. Ocorreu com a Concertación no Chile, aconteceu no Brasil, no Uruguai. Justamente porque essa esquerda existe,a democracia não se enfraquece. Assim como, por sua vez, existe uma direita democrática, que na América Latina também era raridade no passado. Hoje temos países como Colômbia e Peru, com governos de direita e onde a democracia não ficou debilitada, ao contrário.
Em que medida lhe pesa ser Mario Vargas Llosa? De que maneira a fama complica sua vida?
Vargas Llosa: Me complica muito. Tenha 75 anos e gostaria de ter uma vida um pouco mais tranquila. Ser muito conhecido tem muitos inconvenientes: você perde privacidade, liberdade e muitas vezes deve viver em uma tensão nada propícia para o trabalho literário. Ao mesmo tempo, é o que acontece. Não escolhi, mas também não vou me enfiar num convento: deve ser chatíssimo.
O Prêmio Nobel aprofundou o problema?
Vargas Llosa: Catapultou o problema a um exibicionismo permanente que, no fim, é muito cansativo. Há um assédio permanente e é preciso saber defender-se. Por exemplo, antes, no meu país, eu percorria a cidade de ônibus, ia aos novos bairros, caminhava por horas. Isso hoje é impossível. Quase não posso sair de casa. E esta é uma grande limitação na minha vida. Amo muito a liberdade, e se sair significa converter-me automaticamente num espetáculo, prefiro não sair.
E do ponto de vista literário, atrapalha esta condição?
Vargas Llosa: Não, não creio. Isso dura um ano. Em outubro chegará outro Nobel e será uma libertação extraordinária.
O senhor foi muito elegante e disse que daria o próximo Nobel a Jorge Luis Borges, se estivesse vivo.
Vargas Llosa: Sim, eu o ressuscitaria e lhe daria o Nobel.
Mas como não pode ressuscitá-lo e precisa desesperadamente que outro Nobel seja escolhido, quem seria?
Vargas Llosa: Eu o daria a Claudio Magris, um grande ensaísta e novelista, um grande escritor de livros de viagens.
E as sequelas do Nobel, existem?
Vargas Llosa: Não vou deixar que me convertam em uma estátua, não combinam comigo. Quero seguir vivo até o fim.
Fonte: O Globo.
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