A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, foi a responsável por fazer valer uma antiga jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) de permitir a investigação de um presidente por fatos não relacionados ao seu mandato.
Seu antecessor, Rodrigo Janot, evitou investigação sobre atos da então presidente Dilma Rousseff argumentando que a Constituição proíbe a responsabilização do presidente por crimes cometidos antes do início do mandato.
Raquel Dodge recuperou a tradição do entendimento do STF segundo a qual o presidente pode ser investigado, mas não denunciado por crimes cometidos fora de seu mandato presidencial.
Os dois, porém, investigaram o presidente Temer por supostos crimes cometidos já depois de ter assumido definitivamente a Presidência da República. Janot pediu processos contra Temer em duas ocasiões, e o Congresso negou a autorização.
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Raquel Dodge investiga um decreto assinado por Temer sobre a política portuária, que teria beneficiado amigos do presidente. Mas mesmo admitindo que o presidente pode ser investigado, Raquel Dodge já indeferiu duas vezes pedidos da Polícia Federal de quebra dos sigilos do presidente Temer.
A primeira, no inquérito que apura acusações de pagamento de propina do setor portuário, Temer só teve seus sigilos bancário e fiscal quebrados porque o ministro Luís Roberto Barroso apoiou o pedido da Polícia Federal, que a procuradora-geral da República havia recusado.
Esse processo pode gerar mais uma ação de impedimento contra Temer a ser analisada pelo Congresso, embora seja difícil que a autorização seja concedida. Não que Temer continue tendo uma ampla margem de votos na base aliada, mas porque não parece razoável tirá-lo neste momento, a quatro meses das eleições.
Agora, na investigação sobre a acusação de pagamento de propina de R$ 10 milhões pela Odebrecht para o PMDB, que teria sido acertado em um jantar no Palácio Jaburu quando Temer ainda era vicepresidente, Raquel Dodge se posicionou mais uma vez contra a quebra do sigilo telefônico de Temer. Caberá ao ministro do Supremo Edson Fachin autorizar ou não a ação da Polícia Federal.
Esta é a primeira vez que um presidente no exercício do cargo tem seus sigilos quebrados. Prevaleceu o entendimento de que a cláusula de exclusão de responsabilidade prevista no parágrafo quarto do artigo 86 da Constituição (o presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções) não inviabiliza a investigação.
A “relativa e temporária” proteção ao presidente da República surgiu no Brasil durante o regime do Estado Novo de Getulio Vargas na carta autocrática de 1937. As demais constituições republicanas jamais contemplaram a imunidade penal temporária, e sob todas as outras constituições o presidente da República poderia ser processado até por fatos estranhos ao desempenho do mandato presidencial.
A Constituição de 1988 trouxe de volta esse dispositivo que só é compatível com a lógica autoritária do Estado Novo. A posição que orienta a jurisprudência do STF é a do decano do Supremo, ministro Celso de Mello, que definiu a questão ainda no governo Collor: nada impede que, por iniciativa do Ministério Público, sejam ordenadas e praticadas, na fase pré-processual do procedimento investigatório, “diligências de caráter instrutório destinadas a ensejar a informatio delicti (informação sobre o delito) e a viabilizar, no momento constitucionalmente oportuno, o ajuizamento da ação penal”.
Os que defendem a blindagem completa lembram que uma investigação que eventualmente aponte crimes contra presidentes pode gerar uma crise institucional, mesmo que não haja uma condenação. É o que está acontecendo neste momento no Brasil, embora não seja apenas essa investigação a responsável pela falta de credibilidade do presidente.
Certamente o conjunto dos pedidos de processo contra Temer é parte importante da impopularidade e descrença em relação às ações do Planalto.
Nos Estados Unidos os presidentes podem ser investigados e punidos, como acontece agora com Donald Trump, investigado e com probabilidade de ser condenado por ações da campanha eleitoral ilegais, com auxílio do governo russo. A tal ponto que Trump considera a hipótese de anistiar a si próprio, o que certamente seria impugnado pela Suprema Corte. Aqui, aliados do presidente Temer negociam um indulto, mas ainda não tiveram o desplante de pensar em um auto-indulto.
Fonte: “O Globo”, 07/06/2018