Parece que foi ontem que alguns advogados de réus no processo do mensalão repetiam a cantilena de que o foro privilegiado por prerrogativa de função no Supremo Tribunal Federal era injusto porque importava julgamento em instância única, no que se suprimia a possibilidade dos múltiplos recursos proporcionados pelo sistema processual brasileiro. Tudo o que almejavam era fugir da rigidez da Corte de então e do risco iminente de prisão após a condenação, mediante envio do processo a juízes de primeira instância. Naquele momento, o discurso era que o foro privilegiado de alguns réus representava afronta ao princípio do juiz natural em relação a outros.
Mas o mundo gira e faz parecer, às vezes, que tudo está de cabeça para baixo. Numa guinada surpreendente, busca-se agora retirar um ex-presidente da República da alçada de policiais, procuradores e juízes que seriam os naturalmente competentes para investigá-lo, processá-lo e julgá-lo. Esse movimento de nomeação do ex-presidente Lula para um ministério, com o propósito aparente de burlar a regra de competência do juiz natural dos procedimentos investigatórios em curso, deverá desafiar os ministros do Supremo Tribunal Federal a responderem a seguinte questão: pode algum cidadão escolher o juiz que o julgará e o membro do Ministério Público que o investigará e o denunciará? A resposta é desenganadamente negativa. Um dos princípios cardeais de qualquer sistema judicial é o do juiz natural e, por extensão, do promotor natural. As regras definidoras das competências de juízes e promotores devem estar fixadas ex ante, precisamente para evitar qualquer tentativa de manipulação de eventuais investigados ou réus. A imparcialidade e a integridade do sistema de Justiça dependem da observância dessas regras.
Pois bem. É verdade que o artigo 102, inciso I, alínea “c”, da Constituição da República dispõe que ao Supremo compete julgar os ministros de Estado nas infrações comuns e de responsabilidade. Mas será que o Supremo deve aceitar, de forma pacata, uma manobra tão evidente para burlar os princípios do juiz natural e do promotor natural? A Corte Suprema do país estaria obrigada a coonestar a fraude às normas processuais, com o claro intuito de proteger o ex-presidente da atuação das autoridades que seriam naturalmente competentes para investigá-lo e, eventualmente, processá-lo?
A resposta convencional seria sim. Mas eu ouso dizer que não. Há na jurisprudência do Supremo, inclusive na jurisprudência específica relativa a manobras com a questão do foro privilegiado por prerrogativa de função, algumas reações importantes. Entendo que há duas possibilidades para o Supremo coibir essa manobra.
A primeira solução seria adotar o entendimento que, em relação a fatos pretéritos ao exercício da função ministerial (isto é, quanto a fatos anteriores à nomeação para o cargo de ministro de Estado), a competência subsiste nas instâncias ordinárias. Tal entendimento importaria a revisão parcial da jurisprudência da Corte, que tem entendido que o foro privilegiado é prerrogativa da função, independentemente do momento em que os fatos em apuração ocorreram. A mudança restringiria temporalmente a competência do Supremo para julgar infrações ocorridas no exercício da função de ministro de Estado.
A segunda solução seria adotar o entendimento da vedação à fraude à lei. Em outras palavras, o Supremo teria que se posicionar sobre a nomeação de Lula para o Ministério, entendendo que se trata de uma tentativa de burla às normas processuais definidoras de competências — tanto do Judiciário como do MP — para definir que os procedimentos investigativos ou processos judicias eventualmente em curso contra o ex-presidente devem prosseguir sob a condução dos promotores e juízes naturais dos casos.
Por evidente, eventual posicionamento do Supremo nessa linha não impediria a nomeação de Lula para o Ministério. O Supremo poderá até esclarecer que se o objetivo do governo é apenas contar com a atuação política do ex-presidente, tal prerrogativa será assegurada, pois o que se impedirá será apenas a alteração das regras de competência para investigar, processar e julgar um cidadão comum por meio da sua nomeação para um ministério.
Até que uma reforma constitucional ponha termo a esta distorção, o Supremo não deveria permitir que comportamentos oportunistas pudessem manipular o exercício da jurisdição no país. Para o bem do próprio Supremo e do Brasil.
Fonte: O Globo, 17/02/2016.
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