Paira no ar um falso mistério, exposto por Clóvis Rossi na Folha de S.Paulo sob a forma de uma indagação: “Por que os EUA resolveram torpedear o acordo Brasil-Turquia-Irã?” Gilles Lapouge, no Estado, ofereceu uma resposta, que está implícita na própria pergunta: “À primeira vista, podemos pensar que os grandes da diplomacia mundial simplesmente ficaram melindrados ao ver que Ancara e Brasília obtiveram de um só golpe o que os “gênios” não conseguiram.” Rossi e Lapouge são analistas independentes, não porta-vozes informais de Lula e Celso Amorim, como tantos outros. Pergunta e resposta, contudo, funcionam como senhas de uma narrativa oficiosa brasileira de graves implicações estratégicas.
A narrativa é a seguinte: 1) O acordo tripartite obtido por Brasil e Turquia é idêntico ao proposto em outubro pela Agência Internacional de Energia Atômica e rejeitado pelo Irã; 2) os EUA estimularam o Brasil a perseguir o acordo, como atestariam trechos vazados de uma carta de Barack Obama a Lula; 3) Washington rejeitou o acordo com a finalidade de barrar a ascensão de Brasil e Turquia ao estatuto de mediadores da questão iraniana; 4) assim como George W. Bush, Obama não está interessado em negociações, perseguindo uma confrontação com o Irã.
A indagação de Rossi merece uma resposta direta: maio não é outubro. Em outubro, o acordo rechaçado por Teerã abriria uma janela para negociações, pois o envio de 1.200 quilos de urânio levemente enriquecido (LEU) ao exterior deixaria o Irã sem combustível suficiente para avançar no rumo da bomba durante um intervalo razoável. Agora, após sete meses de operação das centrífugas iranianas, a mesma quantidade de LEU representa apenas pouco mais de metade do combustível disponível, de modo que Teerã poderia escapar das sanções e seguir enriquecendo urânio.
Quando Mahmoud Ahmadinejad e Lula ergueram os braços em triunfo, eles celebravam pontos diferentes do acordo. O brasileiro comemorava os itens que reproduzem trechos da carta de Obama, enquanto o iraniano comemorava o item 10. Nele, acintosamente, está escrito que Turquia e Brasil “apreciaram o compromisso iraniano com o TNP e seu papel construtivo na busca da realização dos direitos na área nuclear dos Estados membros”. A frase é senha diplomática para afirmar um “direito” iraniano de enriquecer urânio, contrariando três resoluções do Conselho de Segurança da ONU. Virtualmente ignorada em meio ao surto patriótico que cegou quase todos os nossos jornalistas, a passagem foi registrada em Washington, Moscou e Pequim. Para esclarecer de vez o significado do acordo, o ministro do Exterior iraniano afirmou que seu país continuaria a enriquecer urânio, uma declaração descartada como bravata irrelevante por Celso Amorim.
A resposta de Lapouge só faz sentido para quem começou a acompanhar a crise iraniana na hora da viagem de Lula a Teerã. Há dois anos, na campanha eleitoral americana, enquanto Hillary Clinton prometia “obliterar” o Irã, Obama ousou sugerir que negociaria com o país persa. No governo, estendeu a mão a Teerã e conservou-a no ar durante quase um ano, até o rechaço do acordo de outubro. Nesse intervalo, congelou a proposta de novas sanções da ONU, resistindo às pressões do Congresso. Agora, não pode ser ludibriado por Ahmadinejad, sob pena de assistir à implosão de toda a sua estratégia para o Oriente Médio.
O Congresso americano tem pronto para ser votado um pacote unilateral de sanções que atingiriam em cheio a economia iraniana. É uma espada suspensa sobre Obama, pois sua aprovação forneceria um estandarte nacionalista para Ahmadinejad isolar a oposição no Irã e prejudicaria a ação multilateral das potências. No fundo, a iniciativa do Congresso equivaleria a um atestado de falência do Executivo na política de contenção do programa nuclear iraniano. Como efeito colateral se evaporariam as chances de Obama conseguir apoio doméstico para pressionar Israel a negociar seriamente com os palestinos.
Obama e Hillary dispararam telefonemas para Moscou e Pequim logo que vieram à luz os termos do acordo tripartite concluído em Teerã. Um projeto de sanções multilaterais desceu como um raio à mesa do Conselho de Segurança. Os EUA provavelmente pagaram caro pelo compromisso das potências recalcitrantes. Mas o consenso alcançado deriva do reconhecimento de que o Irã não é uma segunda Índia. No Subcontinente Indiano, configurou-se um cenário de dissuasão mútua entre Índia e Paquistão. No Oriente Médio, a hipótese de um equilíbrio nuclear entre Irã e Israel ampara-se na premissa incongruente de que os rivais árabes do Irã – Egito, Arábia Saudita e Iraque – aceitariam acocorar-se à sombra da bomba persa.
Enrolados num pano verde e amarelo, analistas brasileiros especulam à vontade sobre os motivos de Obama para rejeitar o acordo tripartite, mas não se perguntam sobre as motivações dos que puseram sua assinatura junto à do Irã. A Turquia, governada por um partido islâmico moderado, tem razões nacionais para jogar a carta iraniana: Ancara está dizendo que o veto persistente ao seu ingresso na União Europeia desvia sua política externa na direção do mundo muçulmano. O Brasil, ao contrário, sacrifica seus interesses nacionais no altar de imperativos partidários e ideológicos quando oferece álibis ao governo de Ahmadinejad. O preço dessa escolha começou a ser pago no momento em que as cinco potências da ONU rasgaram o acordo tripartite de Teerã.
Há, contudo, mistérios de verdade. Lula traveste-se de negociador global, capaz de solucionar a crise iraniana e mediar o impasse entre Israel e os palestinos. Alguém aí pode explicar por que nosso homem em Teerã não moveu uma pedrinha para conciliar os interesses da Colômbia e da Venezuela ou, ali na esquina, acertar os ponteiros entre Argentina e Uruguai na patética “guerra das papeleras”?
Fonte: Jornal “O Estado de S.Paulo” – 27/05/10
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