O Brasil que está saindo das urnas merecerá no futuro próximo análises mais aprofundadas de sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, mas os desdobramentos das pesquisas de intenção de votos já permitem fazer um retrato da sociedade brasileira que Bolsonaro, por instinto próprio ou orientação de alguém ainda não identificado, compreendeu melhor do que o PT e outros partidos.
Um momento exemplar dessa falta de compreensão é aquele em que a filósofa Marilena Chaui grita que detesta ” a classe média”, provocando risos do então presidente Lula.
O que o diretor do Datafolha Mauro Paulino chama de “aburguesamento de valores” da classe média brasileira já estava identificado em pesquisa do Instituto Perseu Abramo, ligado ao PT, logo após as eleições municipais de 2016, quando o partido perdeu largamente.
O Instituto avisava que o “imaginário social dos moradores da periferia de São Paulo”, já àquela época, revelava uma intensa presença dos valores liberais do “faça você mesmo”, do individualismo, da competitividade e da eficiência.
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Uma população que não crê em partidos; almeja crescer individualmente; busca transformações, mas é pouco afeita a rupturas; anseia por novas idéias, mas é também pragmática.
As pesquisas de hoje confirmam que a sociedade exalta o “autoritarismo” de Bolsonaro, provavelmente confundindo com “autoridade”, para trazer ordem aos serviços públicos, proteção à família, (instituição mais valorizada pelos brasileiros segundo o Datafolha), e meritocracia no trabalho. “Tudo sob a proteção divina”.
Uma novidade relevante é que Bolsonaro é identificado como aquele que mais ajuda os ricos, primeira vez que um candidato à Presidência da República lidera a disputa com essa definição, que era depreciativa, e hoje parece ser uma qualidade almejada pela maioria, com sonhos de ascensão social.
Outro que anteviu esse processo foi o ex-ministro Mangabeira Unger, professor de Harvard, que achava “decisivo” para qualquer orientação transformadora do Brasil o surgimento de uma nova classe média, e uma nova cultura de emergentes, “esse pessoal que estuda à noite, luta para abrir um negócio, ser profissional independente, que está construindo uma nova cultura de autoajuda e de iniciativa, e está no comando do imaginário nacional”.
Ele percebeu o movimento “como um elemento entre muitos dessa nova base social. São dezenas de milhões de brasileiros organizados”. Mangabeira desenvolveu a tese de que evangélicos brasileiros têm semelhança com pioneiros que fundaram os EUA e tinham o espírito empreendedor que faria a diferença para o desenvolvimento do Brasil.
Com base nisso, participou da criação de um novo partido, em outubro de 2005, o Partido Municipalista Renovador (PMR), cognominado pelo então prefeito Cesar Maia como “o gospel do crioulo doido”, hoje Partido Republicano Brasileiro (PRB), criado pelos evangélicos da Igreja Universal para substituir a marca PL, manchada pelo escândalo do mensalão que estourara naquele ano.
O projeto era o controle político da chamada “nova classe média”. A preocupação do PT com a ascendência da Universal nesse universo eleitoral foi explicitada pelo ministro Gilberto Carvalho, então secretário-geral da Presidência, que alertou que as esquerdas deveriam disputar ideologicamente a massa dos emergentes. Gilberto Carvalho chegou a falar na criação de um sistema de comunicação de massas para transmitir a esses novos consumidores as idéias do governo.
Os evangélicos reagiram com vigor, e o projeto político se manteve afastado do PT. A sigla manteve-se nas eleições gerais de agora entre os maiores, à frente do PSDB e do DEM, por exemplo: elegeu 30 deputados federais, 42 deputados estaduais e um senador, além de um vice-governador, Carlos Brandão, no Maranhão.
Um exemplo de como os políticos tradicionais não entenderam essa transformação está num vídeo em que o então governador Sérgio Cabral visitava no Rio, com o presidente Lula, um condomínio popular do subúrbio. Um rapaz aproximou-se e reclamou que não tinha quadra de tênis na área de lazer. Cabral passou-lhe uma descompustura: ” Deixa de bobagem. Tênis é jogo de burguês”.
A popularidade de Lula hoje, mais do que nunca, se ancora nos grotões do interior, onde uma horda de desvalidos é cuidadosamente manipulada por seus programas assistencialistas. São os excluídos, presentes em maior parte no Nordeste, única região em que o petista ganha de Bolsonaro com 60% dos votos válidos.
Fonte: “O Globo”, 21/10/2018