Juízes se transformaram em legisladores de fato. Acontece que eles não são! Recentemente, o magistrado Adriano da Rosa Bastos proibiu, por intermédio da portaria nº 034/2011-DF, a “paquera” no Calçadão Frei Paulino, da Praça São José, em Itaporã, Mato Grosso do Sul.
A portaria acima aludida também proíbe toda forma de aglomeração de adolescentes e adultos, munidos de bebidas alcoólicas e fazendo uso de aparelho de som em alto volume, e, segundo consta, a Policia Militar realizará policiamento ostensivo visando dar cumprimento aos termos da normativa, ficando autorizada a realizar apreensões dos equipamentos e tomar as providências necessárias para a manutenção da ordem pública e da tranquilidade da sociedade.
Sobre o caso de Itaporã, desejo fazer algumas considerações pontuais e bastante sérias:
a – a tal “paquera” de Itaporã, que vem ocorrendo há mais de vinte anos nas noites de domingo, pode ser considerada como costume local, ou seja: é um evento semanal vintenário;
b – por que num texto jornalístico não há espaço para a transcrição integral de artigos de textos legais ou da Carta Magna, digo simplesmente que a decisão do juiz de Itaporã é vergonhosa e absolutamente inconstitucional por violar o artigo 5º caput e incisos XV, XVI e XVII da Constituição brasileira em vigor;
c – se os jovens que se reúnem em Itaporã causam problemas por causa de bebedeira, som alto e quebra-quebra, então deveriam as autoridades competentes daquela cidade e daquele Estado agir, deixando de ser lenientes. O que não pode ocorrer – mas ocorreu – é um mero juiz baixar uma portaria, dando-lhe força de norma geral e abstrata (como se fosse emenda constitucional ou lei), restringindo a liberdade de reunião e de locomoção na área da praça;
d – na hipótese de os jovens continuarem a praticar atos ilícitos, então que eles sejam presos em flagrante; daí por que é de se perguntar: não há polícia no Mato Grosso do Sul e em Itaporã?
e – imiscuiu-se sua excelência no poder constituinte derivado e/ou no de legislar para modificar os termos da Carta e/ou criar norma geral e abstrata de estatura infraconstitucional, e isto não lhe cabe por respeito à tripartição dos Poderes de Montesquieu e da Constituição;
f – a inconstitucionalidade da portaria proibitiva de Adriano da Rosa Bastos pode ser questionada no Supremo Tribunal Federal por meio de ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), bem como pelo recurso extraordinário em processo que esteja em trâmite na Comarca. E, no meu sentir – e mais ainda –, cabe denúncia contra esse magistrado perante o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de acordo com as hipóteses elencadas no art. 103-B da Constituição de 1988;
g – Vinícius de Moraes e Tom Jobim devem estar a dar voltas em seus túmulos, uma vez que – trocadilhando-se a canção Tarde em Itapoã – tornou-se impossível “(…) passar uma tarde em Itaporã, ao sol que há em Itaporã, falar de amor em Itaporã, namorar e beijar em Itaporã…”, e tudo pelo fato de um juiz se ter julgado competente para extrapolar as suas funções jurisdicionais, adentrando no âmbito de competência do Congresso Nacional brasileiro.
É interessante notar que na roda viva da História, da Ciência Política e do Direito Constitucional, houve fases em que o poder executivo preponderava: isso ocorreu por muitos séculos nos grandes impérios da antiguidade, bem como na fase de reconquista do poder central – com a superação do Estado fragmentado da Idade Média baseada doutrinariamente nas obras de Jean Bodin e Thomas Hobbes.
Deu-se a virada com a vitória dos ideais liberais da Revolução Francesa e da independência dos Estados Unidos, quando vingou a volonté générale (vontade geral) de Jean-Jacques Rousseau, volonté générale esta representada pelo Parlamento, tempo a partir do qual a lei passou a ser encarada como a sacralização da voz do povo. Mais uma transformação ocorreu quando nos Estados Unidos teve início o que hoje classificamos de controle difuso de constitucionalidade, principalmente após a paradigmática decisão do Justice Marshall no caso concreto de Marlbury versus Madison, o qual serviu como leading case para que os juízes norte-americanos passassem a poder deixar de aplicar a lei se esta violasse a Constituição – e isso foi uma quebra do princípio rousseauniano da legalidade. Colocou-se, então, em supremacia o Poder Judiciário, radicalizando-se esta superioridade com a influência de Hans Kelsen na criação dos Tribunais Constitucionais europeus (a partir do austríaco, em 1921), os quais tinham como única competência o exame da constitucionalidade de atos normativos infraconstitucionais, com o poder de lhes tirar a validade caso o tribunal declarasse inconstitucional o texto normativo impugnado.
Todas as mudanças ocorridas no relato acima decorreram de verdadeiras revoluções estruturais nos Estados, e isso em escala mundial. Já a decisão singular do juiz de Itaporã não se enquadra em caso algum de revolução nas estruturas do Estado. Trata-se ela, sim, de decisão desprovida de qualquer lastro constitucional por restringir a liberdade de locomoção e a liberdade de reunião. Consequentemente, além de caber contra a portaria em tela o recurso extraordinário e a ADPF, também cabe habeas corpus preventivo, impetrável por qualquer pessoa em nome de quem está com a liberdade de locomoção ameaçada, assim como cabe habeas corpus repressivo na hipótese de qualquer pessoa ser levada presa só por se encontrar aglomerada com outros jovens, pacificamente, e namorando numa praça desta cidade chamada Itaporã.
Jovens de Itaporã: reúnam-se na praça! Beijem-se! Mas respeitem a Constituição e as leis, e, sobretudo, façam um favor ao Brasil: não deixem de exercer a liberdade de locomoção e de reunião que a Carta Magna de 1988 lhes deu, pois, o que lhes foi dado pelo andar de cima (a Constituição), não pode lhes ser tomado pelo andar de baixo (o juiz).
Bravo!!!
O artigo é brilhante em seu conteúdo pois,além do nos aclarar acerca do que ocorre em uma cidade brasileira nos dias atuais, brinda-nos com uma aula de constitucionalidade e sua evolução mundo afora.
O legislar através do Poder Judiciário nos demonstra preocupante “involução” jurídica.
Parte do artigo:”(…)hipótese de qualquer pessoa ser levada presa só por se encontrar aglomerada com outros jovens, pacificamente…” fez-me lembrar marcas indeléveis deixadas por um passado…
Alexandre Coutinho Pagliarini está certíssimo! Não pode o Judiciário reprimir a liberdade de jovens por meio de simples Portaria. Tal medida jamais seria possível em democracias como Noruega, EUA, França e Inglaterra. Onde está o CNJ para tomar providências contra este tipo de Juiz? Dr. Reinaldo da Matta Machado
Nu! Bom demais, Alexandre! Parabéns e continue nos brindando com seus textos! Forte abraço!!!
Não temos Congresso Nacional. Os juízes se tornaram deputados e senadores e ninguém respeita a Constituição neste país. Viva os jovens de Itaporã!
Muito bom artigo, sobretudo pela escolha do tema vincada em fatos do cotidiano que, visto pelos olhos de um especialista, sai da seara do senso-comum.
parabens dr adriano,pode não ser constitucional mas e um atom de estrema coragem e ,faz com que o legislativo daque cidade desperte para seus deveres.
EMENTA: Legislativo omisso. Judiciário legislador. Exacerbação de competência jurisdicional. Beijo. Reunião. Inconstitucionalidade da proibição por juiz. ALEXANDRE COUTINHO PAGLIARINI