“Cancelar” uma pessoa ou autor é, nos termos da discussão atual, destituí-lo de seu lugar no debate público ou na carreira profissional por conta de alguma discordância ideológica pontual.
Existe um certo exagero ao considerar que todo mundo que recebe algum tipo de crítica na internet foi, por isso, “cancelado”. Mas é inegável que, seja nas redes sociais, em alguns veículos de imprensa ou mesmo em certos departamentos universitários, um credo moral e político progressista é imposto de maneira autoritária e agressiva, promovendo uma perigosa uniformidade de pensamento.
Foi em resposta a isso que uma carta aberta em defesa de “justiça e debate aberto” foi publicada na revista Harper’s no dia 7 de julho.
“A livre troca de informações e ideias (…) está a cada dia se tornando mais restrita.” Assinam a carta intelectuais e artistas tão diversos quanto Noam Chomsky, Steven Pinker, Margaret Atwood, Wynton Marsalis e J. K. Rowling.
Haverá limites à sanha canceladora do moralismo progressista? E ele também não terá alguma razão em sua indignação?
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Como costuma acontecer quando nos deparamos com questões sociais complexas, só mesmo um filósofo para dar conta do problema. Em artigo publicado no dia 21 no The New York Times (“Should we cancel Aristotle?”), a filósofa Agnes Callard pergunta, provocativamente, se “deveríamos cancelar Aristóteles”.
No texto (a resposta à pergunta, por sinal, é não), ela estabelece a diferença entre textos filosóficos, que devem ser lidos “literalmente” —isto é, considerando os méritos e argumentos propostos pelo autor— e textos que buscam, mais do que dizer exatamente aquilo que suas palavras significam, passar uma “mensagem”: atender a certo interesse, indicar apoio a este ou aquele lado de uma disputa.
São textos que valem como sinalização. Considerar seus méritos argumentativos é perder de vista sua finalidade.
Da mesma maneira, tratar um texto filosófico —e podemos incluir aí toda discussão séria— como mera sinalização é perder seu valor: as ideias e argumentos, a base, afinal de contas, do nosso conhecimento.
Uma pessoa que não vai além das supostas motivações torpes de um autor do qual ela discorda jamais será capaz de avaliar suas opiniões racionalmente, e portanto será incapaz de se corrigir e aprender.
A autora é benevolente com a tendência autoritária do “cancelamento”. Estende a dignidade do tratamento filosófico a pessoas que se preocupam mais com a sinalização política. Mas justamente por isso nos convida a levá-la a sério e de maneira desarmada.
O Brasil sempre foi pouco filosófico: as relações (políticas e pessoais) do autor pesam muito mais do que o que ele diz. Em que a aparência de estar do lado certo é muito mais importante do que dizer coisas verdadeiras e tecer raciocínios válidos. Os abaixo-assinados valem mais do que um bom argumento. Com as redes sociais e o desejo de popularidade imediata a cada afago dado à audiência, isso só se intensificou.
Não é à toa que, por aqui, a maior parte dos comentários ao texto de Callard sequer foi além do título, vendo nela mais uma progressista desvairada do New York Times, perdendo completamente seu conteúdo, ao mesmo tempo em que brandem aos quatro ventos o abaixo-assinado dos intelectuais – que pouco adiciona de substantivo ao debate além de marcar posição.
Ser um pouquinho menos “morais “(ou moralistas) nas discussões nos ajudaria a construir uma sociedade melhor.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 28/7/2020