Aproximando-se o ciclo dos cem primeiros dias do governo Bolsonaro, já é possível constatar uma maneira de governar no mínimo heterodoxa, estimulada por embates permanentes com o uso das novas mídias sociais e baseada fundamentalmente em questões morais. Os pontos centrais, na Economia as reformas e as privatizações, na Justiça, a lei anticrime, têm atitudes dúbias por parte do presidente, cujo passado interfere nas supostas ideias atuais.
Mais do que ser o presidente de todos, Bolsonaro parece pretender ser o representante de um nicho da direita radicalizada, o que já lhe valeu uma queda acentuada de popularidade, principalmente entre a classe média, que foi fundamental para sua eleição.
O analista Fabio Lacombe, do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (Ebep), diz que a hipervalorização da animação ou reanimação dos “seguidores” estabelece limites muito estreitos para o exercício da convivência política, que requer muito mais do que um agrupamento em torno de determinadas ideias, pois prevê exatamente questioná-las. A desconvocação da cientista política Ilona Szabó de um conselho sobre segurança pública é exemplo disso.
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Como Freud mostrou, diz Fabio Lacombe, as exigências morais, uma vez se impondo, se tornam cada vez mais rígidas, em vez de abrirem espaço para possibilidades que ainda não se revelaram. E a realidade política, diferente da postura moralista, está sempre promovendo essas aberturas.
“A questão do agendamento, se não estiver submetida ao propriamente político, é porque se presta mais, por suas dimensões exíguas, a colocar os cidadãos numa marcha onde o pensamento se recolhe às dimensões de reprodução das ordens agendadas”, analisa Lacombe, que lembra que Clausewitz, grande teórico da guerra, avaliou que ela se impõe quando os recursos políticos se esgotaram.
“Apoio político deve ser a adesão a um conjunto de ideias que manifestam a expectativa de que sua aplicação vai promover um estado de coisas que visam ao bem comum”, afirma o analista do Ebep. Delas não emerge nada parecido com um conjunto de regras que devem ser obedecidas sem serem questionadas.
Se, diante da desilusão de certos setores de eleitores que votaram em Bolsonaro mais para se livrar do PT do que propriamente em favor de suas propostas, surge um desapontamento com algo que emergiu, só se pode valorizar esse “desapontamento”, pois gera uma possibilidade de reflexão.
Não basta se encolher numa aparente recompensa, analisa Lacombe. “Mesmo porque ficar livre de algo não garante que essa ‘liberdade’ conquistada deixe em seu lugar algo melhor”, adverte. Se a grande questão era a condução da política submetida a uma rígida postura ideológica, o que tem sido apontado por alguns é que só teria sido invertido o sentido da seta que indicava a direção da ideologia.
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Ideologia, lembra Fabio Lacombe, segundo Destutt de Tracy, o criador do termo, trata-se de uma “ciência das ideias”, portanto, nada que possa ser entendido como um conjunto de postulados norteadores de uma conduta política. “A ideologia supõe a necessidade de uma permanente reflexão a respeito da própria conduta”.
O que estaria acontecendo no mundo ocidental que possa estar servindo de sustentáculo para a disseminação do conservadorismo, e não apenas no Brasil? Para Fabio Lacombe, o conservadorismo, no seu manifesto aprisionamento a uma tentativa de evitar as mudanças, encontra nas questões ligadas aos costumes seu alimento maior.
Mas, ao mesmo tempo, destaca que nunca foi tão manifesta a dimensão da ganância, evidenciada no crescente recurso à corrupção, por exemplo. Por que o acento nos costumes, nas regras morais? Qual o lugar da busca pelo dinheiro, nas avaliações do comportamento político?
Na verdade, analisa Lacombe, estamos sendo envolvidos por uma “estimulação” informacional que assumiu proporções assustadoras. “Se pensarmos que os meios atuais colocaram o contato “a dois” numa escala de possibilidades inauditas, certamente criou-se a impressão de uma proximidade entre estamentos antes impossível”, ressalta.
“Se posso acessar um Twitter emitido por meu presidente, figura sempre tão distante em sua altitude, sinto-me numa proximidade que me distingue. Essa dimensão fantasiosa, certamente me preenche em minhas aspirações infantis de estar participando de um mundo ‘adulto’, antes inacessível”.
Fabio Lacombe admite que é “um pouco leviano” elaborar uma conceituação muito requintada do que estamos de fato vivenciando de transformação, “mas não pode passar desapercebido o fato de a relação presencial parecer menos importante da que o celular, por exemplo, propicia. E isso certamente tem uma dimensão política”, acentua Fabio Lacombe.
Fonte: “O Globo”, 31/03/2019