O complexo de vira-lata, conceito criado por Nelson Rodrigues para traduzir a inferioridade em que o brasileiro se coloca ante o mundo, está a olhos vistos cedendo lugar ao complexo de faraó. Haja olhos para contemplar a arquitetura faraônica que se espraia pelo País na forma de construções suntuosas, edifícios majestosos, obras de desenhos arrojados e massas volumosas que causam estupefação. A propósito, nestes tempos de quase convulsão social no Egito, o Brasil se habilita a ser o hábitat para abrigar o sono eterno dos faraós, fustigados pelo eco da turba que chega às suas tumbas. Se suas majestades só se sentem confortáveis em pharao-onis, termo do velho latim para significar “casa elevada”, é isso que encontrarão no Planalto brasiliense, também conhecido como morada dos faraós no século 21. O fausto, a opulência, o resplendor, a exuberância se elevam nos espaços, sob o ditame inquestionável de que, se a obra tiver de ser construída em Brasília, haverá de receber o selo de Oscar Niemeyer e, por consequência, não sofrerá limites de gastos. A mais recente tumba, ou melhor, o mais resplandecente edifício destes tempos de contenção (?) é a sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que consumirá quase meio de bilhão de reais.
Não se pretende questionar a qualidade técnica e artística das monumentais obras de Brasília e de outras paragens. A capital federal, seu criativo traçado e, de maneira mais abrangente, a própria arquitetura brasileira ocupam lugar de destaque nos mais belos portfólios do planeta. A questão diz respeito aos princípios constitucionais da economicidade, moralidade e finalidade da administração pública. Que devem ser obedecidos a partir dos gestores lotados nos píncaros da administração pública. As sedes monumentais (termo associado a Brasília), apesar do encantamento que provocam, puxam o rolo do desperdício. Eis a pergunta recorrente: o custo da obra faz jus ao porte das tarefas do órgão? Ora, sabe-se que o TSE é o eixo com a menor demanda do Poder Judiciário. Em 2009 recebeu 4.514 processos, enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) foi entupido com mais de 103 mil ações. Já o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Tribunal Superior do Trabalho (TST) julgaram 354 mil e 204,1 mil, respectivamente. Ademais, o Tribunal Eleitoral é formado por sete ministros, três dos quais já integram o STF. O pano de fundo do desperdício ganha maior extensão quando se pinça a planilha das demandas do Poder Judiciário no País.
Só São Paulo contabiliza um quinto dos juízes e dos gastos de toda a Justiça brasileira, mas responde por 44% dos processos pendentes. Em 2009 recebeu cerca de 30% das novas ações propostas, contabilizando mais de 18 milhões de processos. Foram 5 milhões de sentenças e quase 1 milhão de decisões de segundo grau. No orçamento deste ano estão alocados para o Judiciário paulista R$ 50 milhões, quantia irrisória diante do programa de reformas e construção de fóruns considerados prioritários, estipulado em cerca de R$ 500 milhões. Os contrastes entre o vasto mundo da abundância e o corredor estreito da carência constituem uma das facetas mais perversas da administração pública.
Se os desníveis nos andares do edifício judiciário são alarmantes, imagine-se a situação catastrófica em outras áreas. Basta anotar a faceta faraônica que se faz presente nas catacumbas do desperdício. Jogamos fora 50% dos alimentos produzidos (perda estimada em R$ 12 bilhões anuais, o que daria para alimentar 30 milhões de pessoas), 40% da água distribuída, 30% da energia elétrica. Os cálculos foram feitos pelo professor de Engenharia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro José Abrantes, autor do livro Brasil, o País dos Desperdícios. Há simplesmente um PIB e meio desperdiçado, ou seja, jogam-se no lixo R$ 3,6 trilhões. Se a montanha de riquezas perdidas pudesse ser preservada, o País estaria, há tempos, no ranking mais avançado das potências.
A que se deve isso? Primeiro, a uma cultura política plasmada no patrimonialismo, assim explicada: a res publica é entendida como coisa nossa, o dinheiro dos cofres do Tesouro tem fundo infinito, o Estado é um ente criado para garantir nosso alimento e bem-estar. O jeito perdulário de ser do brasileiro começa, portanto, com a visão do Estado-mãe, providencial e protetor, no seio do qual se abrigam a ambição das elites políticas e o utilitarismo de oportunistas. O (mau) exemplo dado pelos faraós do topo da pirâmide acaba descendo pelas camadas abaixo, na esteira do ditado “ou restaure-se a moralidade ou nos locupletemos”, que uns atribuem a Stanislaw Ponte Preta e outros ao Barão de Itararé. E quais seriam os caminhos mais curtos para diminuir o Produto Nacional Bruto do Esbanjamento (PNBE)? Ordem e disciplina nos gastos. Rigor no preceito constitucional da economicidade e moralidade. Uso racional do espaço público. Coordenação eficaz dos planos de obras. Qualificação e treinamento dos quadros funcionais. Elevação geral do nível educacional da população. As vias, todas com sua importância no conjunto, se completam.
No momento em que o mais modesto dos brasileiros conseguir decifrar a conta dos exageros nos umbrais da gastança, as distâncias entre os compartimentos da pirâmide serão menores e o Brasil, maior. Meta para mais de uma geração. Ademais, o desenvolvimento de uma cultura banhada na fonte da racionalização e do zelo para com a coisa pública encontra resistências no arcabouço do Estado-espetáculo. Estamos no apogeu do individualismo iluminado pelas luzes midiáticas. Atores principais e secundários, com papéis definidos nas estruturas do Estado, buscam de maneira sôfrega a visibilidade. Quanto mais brilho adquirem, maior prestígio alcançam. A pompa e o estilo nababesco de ser – aqui incluídos palácios e tumbas faraônicas – fazem parte da estética contemporânea do poder.
Eis o nó difícil de desatar. Eis a extrema dificuldade para tirarmos as coroas brancas, vermelhas e azuis dos nossos faraós.
Publicado no jornal “O Estado de S.Paulo”
No Comment! Be the first one.