A campanha presidencial simulada de Lula dissolveu a delgada película que ainda separava o pensamento acadêmico do imperativo partidário. O ácido foi derramado pelo professor da UnB Luis Felipe Miguel, que criou uma disciplina intitulada “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”.
Uma reclamação imprópria do ministro da Educação serviu como pretexto para que dezenas de colegas emulassem o gesto de vandalismo intelectual, ofertando disciplinas idênticas em departamentos da USP, Unicamp, UFBA, Ufam e outras. Na “era Lula”, acostumamo-nos com a redução de acadêmicos a militantes partidários. Agora, assistimos ao ingresso deles no ofício de marqueteiros.
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O vaga-lume ativa e desativa a bioluminescência segundo suas necessidades biológicas. O PT acende e apaga o sinal de “golpe” de acordo com as circunstâncias políticas. O luminoso foi ativado para reagrupar a militância, na hora do colapso dilmista, mas desativado pouco depois, quando o PT anunciou a retomada das alianças eleitorais com os partidos “golpistas” (o MDB e as siglas do “centrão”). Hoje, pressiona-se novamente o interruptor para denunciar o veto legal à candidatura de Lula. A ciência política tem algo a dizer sobre as funções desempenhadas pela narrativa do golpe. Já os acadêmicos que a reproduzem, aplicando-lhe um verniz de discurso científico, depredam a instituição na qual trabalham.
Na UFBA, a disciplina decola no golpe do Estado Novo, transita pelo golpe de 1964 e aterrissa no “golpe de 2016”, que abriria uma etapa de “autoritarismo”. As leis de exceção, a proibição de partidos, a cassação de parlamentares, as prisões políticas, a tortura, a censura, a repressão a manifestações —nada disso aparece no “golpe de 2016”, que obedeceu à letra da Constituição e procedeu segundo regras ditadas pelo STF. Por qual motivo, além da fidelidade ao partido, a disciplina não contempla o “golpe de 1992” (ou seja, o processo de impeachment contra Collor)?
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“O discurso da ‘imparcialidade’ é muitas vezes brandido para inibir qualquer interpelação crítica do mundo”, alegou constrangedoramente Felipe Miguel em defesa de sua obra de marketing fantasiada de disciplina acadêmica. Ocorre que a noção de “imparcialidade”, tão cara ao direito, é estranha à investigação científica. O discurso científico distingue-se do discurso político-ideológico por rejeitar o finalismo: no campo da ciência, é proibido fabricar uma conclusão prévia da qual escorrem as “provas”. A disciplina dos neomarqueteiros não peca por “parcialidade”, mas por violar o método científico.
A prevalência da esquerda nas faculdades de humanidades nem sempre conduziu à dissolução do método científico. Os professores socialistas ou comunistas do passado separavam sua militância partidária de seu trabalho acadêmico, pois acreditavam que a transformação social não seria produzida por eles, mas por uma revolução dos “de baixo”. A ascensão do PT coincidiu com o descrédito da ideia revolucionária —e abriu caminho para o vale tudo intelectual.
Na confusa ideologia original petista, o socialismo nasceria “por cima”, pela construção de uma hegemonia social da esquerda, não da anacrônica insurreição proletária. A missão exigiria a produção de um direito, uma história, uma sociologia, uma antropologia “dos oprimidos”. Na mente dos quadros acadêmicos petistas, a fronteira entre discurso científico e discurso ideológico aparecia como uma conservadora exigência de “imparcialidade” destinada a proteger “as elites”.
Os professores que se entregam ao marketing lulista pertencem à geração de estudantes universitários do “PT das origens”. Tirando os mais ingênuos, eles já desistiram do objetivo socialista, contentando-se hoje com uma migalha: o sucesso eleitoral do partido. O golpe do “golpe de 2016” —eis o título para uma disciplina útil.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 03/03/2018