‘Em política não há coincidências”, dizia Tancredo Neves. Lembrei-me da frase ao refletir sobre fatos recentes — com origem na cúpula dos Três Poderes — que comprometem, gravemente, o combate à corrupção. A percepção de um pacto existe, e há motivos.
Em março, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a Justiça Eleitoral iria julgar crimes comuns, como corrupção e lavagem de dinheiro, conexos a delitos eleitorais. Como os tribunais eleitorais não estão estruturados para apurar crimes complexos, prescrições à vista…
Há dois meses, o presidente do STF, Dias Toffoli, suspendeu investigações oriundas de dados e trocas de informações entre o Coaf, delegados e procuradores. O uso das informações sobre anomalias financeiras detectadas pelo Coaf irá depender de autorização judicial, o que travou investigações e beneficiou, dentre muitos, o senador Flávio Bolsonaro.
Já o ministro Alexandre de Moraes determinou a suspensão imediata das apurações, técnicas e impessoais, instauradas na Receita Federal, envolvendo 133 contribuintes. A determinação ocorreu no bojo do inquérito em que o STF, à revelia do Ministério Público (MPF), investiga, julga e pune. Entre os que deveriam prestar esclarecimentos ao Fisco estavam parentes de ministros da Suprema Corte.
A Segunda Turma do STF anulou a condenação do ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine, baseando-se em regras que, até então, não existiam. “Agora, além de observar o processo legal, será preciso adivinhar o que ainda será criado por interpretação futura do STF”, afirmou o competente procurador do Ministério Público de Contas junto ao TCU, Júlio Marcelo.
A Câmara dos Deputados, em caráter de urgência e em votação simbólica, aprovou projeto que criminaliza o abuso de autoridade. A proposta é a reação da classe política à Lava-Jato. Os vetos do presidente Bolsonaro não eliminaram por completo as possíveis punições a juízes e promotores, com base em interpretações subjetivas relativas às suas decisões. Paralelamente, o pacote anticrime de Moro foi desidratado, e as 70 medidas de combate à corrupção, fruto de propostas da sociedade, inclusive da Contas Abertas, não avançam. Enquanto isso, os fundos eleitoral e partidário poderão custear multas e advogados de políticos. No Senado, o presidente Alcolumbre não dá seguimento aos pedidos de investigação do Judiciário, mesmo após três requerimentos protocolados pelo senador Alessandro Vieira, com o número regimental de assinaturas.
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No Executivo, o presidente Bolsonaro editou medida provisória passando o Coaf (agora UIF) para o Banco Central, com texto que abre brechas para indicações políticas. O secretário-geral da Receita Federal já foi substituído, e o diretor-geral da Polícia Federal, indicado por Moro, está com a cabeça a prêmio. O procurador-geral da República recém-indicado condenou em maio o “corporativismo institucional” do MPF e a “personalização” dos seus membros, o que implica na “criminalização da política” e na “debacle da economia do país”. Mau sinal…
Ao contrário da tese preferida por nove entre cada dez investigados, o combate à corrupção não é a causa do marasmo econômico. O Brasil ocupa o 105º lugar dentre 180 países avaliados no Índice de Percepção da Corrupção, da Transparência Internacional, o que assusta investidores. Estima-se que a corrupção atinja de 1,4% a 2,3% do PIB brasileiro, cerca de R$ 150 bilhões anuais, valor igual ao orçamento do Ministério da Educação para este ano. O cartel que atuava na Petrobras é considerado um dos maiores escândalos de corrupção do mundo, em todos os tempos. Integrar o cartel, fraudar licitações e comprar medidas provisórias era mais rentável do que qualquer investimento.
Tudo o que está acontecendo, quase simultaneamente, faz lembrar a frase de Tancredo: “Na política não há coincidências”. Mas há consequências. O país não irá sair do buraco por meio de um pacto pela impunidade. No Brasil de hoje, no que diz respeito ao combate à corrupção, os cidadãos têm medo do futuro. Alguns políticos têm medo do passado.
Fonte: “O Globo”, 10/9/2019