O Banco Central está vendendo quase US$ 3 bilhões por semana das reservas internacionais, processo que deve se estender ao menos até o fim deste mês, para segurar a alta do dólar.
E de tempos em tempos também ressurge entre políticos uma ideia similar: por que não usar parte das reservas internacionais em moeda forte para garantir investimento, emprego e renda? Afinal, dizem, as reservas estão lá “paradas”, e há um alto custo representado pela diferença entre a baixa remuneração recebida pelo BC no exterior e a Selic, mais alta.
Há complicações técnicas, mas me esforçarei em simplificar sem comprometer a essência. Em primeiro lugar, é preciso dominar a diferença entre o BC, um bicho monetário que cria dinheiro e gerencia a moeda nacional e as reservas, e o Tesouro, um bicho fiscal que arrecada impostos e efetua os chamados gastos públicos. São jurisdições distintas, ainda que existam pontos de contato.
No passado, houve caos inflacionário toda vez que o Tesouro demoliu as paredes legais que separam as jurisdições, tomando para si as chaves da fabulosa máquina de criar dinheiro do BC. Em condições normais, o Tesouro precisa arrecadar impostos ou tomar emprestado (via Tesouro Direto, por exemplo) para obter o dinheiro com o qual efetuará um gasto. Mas, se o Tesouro captura o BC, tudo fica mais fácil: conseguirá todas as fotos da onça-pintada necessárias para gastar o que desejar.
Mais de Hélio Beltrão
Governo deveria aceitar recursos federais
A hora do ouro
A organização do roubo
Ademais, as reservas têm um propósito fundamental: garantir a moeda nacional. A moeda é tão boa (ou ruim) quanto suas reservas. A estabilidade da moeda depende da qualidade e da suficiência das reservas, que devem ser compostas pelos ativos mais seguros e líquidos.
Se, por suposição, as reservas forem insuficientes para cobrir o dinheiro circulando na economia, haverá risco de fuga de capitais mesmo em cenários benignos, que pode desvalorizar abruptamente o real.
Felizmente, embora o país já tenha amargado diversas crises por insuficiência de moeda forte, há pelo menos dez anos o BC detém reservas superiores a toda a base monetária. A proposição de vender reservas e entregar reais equivalentes ao Tesouro significa solapar a segurança do real e implodir as jurisdições para atender a uma demanda política por mais gastos.
Vale notar também que, quando o real se desvaloriza como nas últimas semanas, o custo de carregamento das reservas despenca e pode até gerar lucro, pois há ganho em reais: os mesmos dólares agora valem mais. O especialista político que cita o cálculo do custo das reservas não costuma incluir tal ganho.
E a qualidade das reservas? Aí reside um problema central do sistema financeiro internacional.
Antigamente se utilizava um bem escasso, o ouro. Hoje as reservas preferidas são títulos públicos americanos, ou seja, uma dívida, que não é escassa. Na prática, ainda que isolados dos políticos por uma eventual “independência”, os doutores do BC detêm o brutal poder de monetizar dívida “ad nauseam”.
Antes havia o padrão-ouro, agora o padrão-Ph.D. Antes era modesto o poder discricionário dos políticos e banqueiros centrais sobre nosso dinheiro, agora o poder total do BC.
Não discordo do fabiano Bernard Shaw, que dizia que “o mais importante para uma moeda é manter a estabilidade; como eleitor você deve escolher entre confiar na estabilidade natural de um bem escasso (ouro, em sua época) ou na honestidade e inteligência de burocratas”. Voto contra monetizar dívidas, e, para isso, é preciso acabar com o BC no formato atual. Voltarei ao assunto.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 4/9/2019