Parte I – Valores e lentes
A perspectiva criada por Kant e seguida por Kelsen se mostra desastrosa no mundo atual. A citação dos dois pensadores se dá não em detrimento aos demais, mas somente porque tal marco no fluxo da história fundamenta a filosofia e demais ciências modernas e pós-modernas, academicamente falando.
Ambos pontuam o dever-ser com exclusão do ser em si. Elaboraram a proposta como se a norma partisse apenas de uma abstrata projeção do perfeito pelo ser humano, unicamente focado em criar regras voltadas ao comportamento ideal.
Na busca da aceitação entre iguais e semelhantes, primeiro aqueles e depois estes, o indivíduo buscou e busca o perfeito. Logo, está a buscar algo além do que conhece e do que pode. Conclusão, ainda está e continuará perseguindo tal status até sua extinção, caso não mude o objeto de sua busca.
A história do existir humano demonstra a ausência da perfeição, assim como explicita a procura vazia, eterna e frustrada de tal busca, ainda que tal evidência seja repudiada, tanto mais por algumas doutrinas religiosas, que se nutrem da culpa do crente em não ser perfeito.
Basta recordar as pessoas mundialmente conhecidas ou desconhecidas que faleceram com idades bastante avançadas, e com um viver rico e variado em termos de experiências. Não morreram perfeitas. Fato quase nada noticiado, mas bem verdadeiro.
Enquanto as estatísticas de crimes contra a vida, homicídios, suicídios e tantas outras variações crescem no planeta, além das fraudes e golpes miseráveis ou milionários, todos tendo como padrão o atuar filosófico clássico do Bem, do Belo e do Justo como cânones de comportamentos, falta ver o básico, o que pode levar à correção idealizada, à melhoria real.
Falta assumir que, para evoluir, é preciso compreender que as comunidades do século XXI precisam determinar não o máximo perfeito da conduta moral, mas o ponto mínimo da imperfeição moral, parcela indesejada, mas presente em cada pessoa, independente de qualquer aspecto biológico, étnico, social, econômico, similar ou decorrente.
E o ponto mínimo da imperfeição moral não é sinônimo de permissividade.
O ideal de uma sociedade perfeita já é abordado em obras literárias, teatrais e cinematográficas. Academicamente ou não. E a abordagem de parâmetros perfeitos também obedece às doutrinas religiosas. Sem críticas diretas e desnecessárias, mas antes de desejar ser tal qual um ser perfeito, é preciso lidar com as próprias imperfeições, sob pena de se tornar refém do que se acredita como correto e virtuoso, sem poder constatar que se é.
Como dito, a imperfeição moral não é sinônimo de permissividade ou auto-perdão ilimitado ou injustificado. É uma proposta que responde à matemática da vida, atos e resultados, ações e reações, omissões e conseqüências; acata sem esconder defeitos e erros, buscando a reparação possível e desejada.
Enfim, o mínimo de imperfeição moral tem como objetivo mudar a perspectiva da punição com base em perfeições as quais nunca conhecemos e não temos perspectivas de conhecer, em troca de se determinar até que ponto o ser humano pode ser correto e exemplar, e diante de tais fatos, estipular um limite básico de acordo com o local e a época, o tempo e o espaço, até para que possa ser possível determinar valores os quais ultrapassam tais conceitos, como o Direito e a Justiça.
Não são necessárias novas normas, novas leis. É necessária outra abordagem mais pragmática, que busca explicar causas e efeitos com base no defeito, e não com base na utópica perfeição jamais experimentada no decorrer da história humana.
Um bom exemplo mostra que juízes decidem causas, em todos os ramos do Direito, com base no mínimo da imperfeição moral, ainda que tenham em mira uma perfeição impossível. Na prática, se julgassem com base no discurso da perfeição efetiva, estariam todos condenados, inclusive os próprios. E jamais existiria uma Instância Maior para avaliar erros, para receber recursos.
O que pode ser apontado como equívoco nos tribunais espalhados em todos os continentes por certo pode ser constatado como equívoco dentro dos lares, independente das características gerais como economia, educação ou saneamento. Grupos humanos se adaptam até mesmo às agruras da guerra e da miséria suprema. O que não muda são as exigências e as cobranças sobre si mesmo e entre os demais.
Parece correto afirmar que a cobrança exagerada sobre si mesmo tem o mesmo ponto falho de qualquer cobrança presente no mundo intelectualizado: persegue-se a perfeição própria. Em não atingindo tal meta, atormenta-se as vidas ao redor com tal exigência.
A proposta que se faz é simples, mas não fácil de executar. Trata-se de assumir ser a raça humana imperfeita por natureza. E tal conclusão nada precisa estar conexa com filosofias, religiões ou doutrinas. Liga-se por evidência ao cotidiano. Logo, a cobrança precisa mudar de foco: não mais exigir uma perfeição nunca vista, mas determinar o mínimo de imperfeição e o que se pode fazer para que a humanidade possa ser melhor a cada dia, sabendo que não será perfeita.
Partindo de um horizonte realista, a permissividade ficará evidente da mesma forma que o abuso. Nem mais, nem menos. Sujeitos ao erro e buscando honestamente ser melhor, ganha o indivíduo, ganha a comunidade. Sem hipocrisia, sem projeção utópica, sem mentiras.
Vale pensar o que leva a espécie a perder diretrizes tão básicas. Independente de teoria evolucionista ou criacionista, a perfeição do seres que habitam esse mundo conhecido é algo nunca alcançado. Não seria o caso de voltar as expectativas para um ponto mínimo real, quer dizer, um ponto tal que seja desejável como comportamento mínimo atingível?
A mudança da lente não compromete o verdadeiro horizonte. Pode, sim, aprimorar a visão do todo, e, assim, da meta em si.
Sem empregar o termo culpa no sentido jurídico de falta de dolo, mas no sentido filosófico do sentimento de reprovação a si mesmo ou a algum comportamento que se tenha perpetrado e dele se sinta constrangido por valores próprios ou de terceiros, temos que a culpa está vinculada à visão equivocada do que se espera da interpretação da norma e a conseqüente conduta conexa a ela.
Sentir-se apenas culpado e manter tal sentimento além do instante em que se percebe o erro, é optar por uma postura estática. A culpa não move nada. Mina a auto-estima e poda iniciativas construtivas. Após os primeiros minutos em que se percebe uma ação ou omissão equivocada, ou seja, a falha para com o mínimo que deseja a norma, o sentimento que se quer é o da responsabilidade.
A responsabilidade, diferentemente da culpa, cria movimento, gera no indivíduo impulso à correção do que for possível corrigir. Busca, de fato, restaurar uma condição anterior ao erro ou ao dano, no qual o autor responsável procura restituir ao terceiro e a si mesmo o mínimo de imperfeição possível.
Na medida em que a leitura da norma se faz considerando a previsão de civilidade como o máximo que se pode esperar do ser humano, tudo o que este praticar em menor grau será objeto de negociação, como se fosse o indivíduo vítima de um texto impossível de ser cumprido, já que seria sinônimo de perfeição. E quem falha em relação à perfeição, peca. É culpado. Fica estagnado e sem esperança de melhorar, já que isso significaria ser uma divindade que não comete erros de quaisquer espécies.
É perceptível, entretanto, que a interpretação da norma como sendo o mínimo desejável, trata de negociar não a vitimização, mas a responsabilidade de ser melhor a cada dia, e não perfeito. É uma leitura que exige mudanças por parte do indivíduo e de todos os grupos sociais. Pode ser demorado, mas é necessário que se comece, ainda que seja por especulação, propostas como a que se faz aqui, e atitudes similares cujo objetivo é pensar e fazer pensar, e assim discutir nosso futuro como espécie.
Mudar comportamentos de forma permanente significa mudar valores desde o momento em que se deram. É preciso regredir em pensamento e resgatar uma filosofia de vida. Tarefa que exige coragem, determinação e paciência. Nem por isso, impossível. É um caminho válido para entender que a boas propostas são simples de entender, mas raramente fáceis de realizar.
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