O referendo do brexit, em 2016, meses antes do triunfo de Donald Trump, marcou o início da ofensiva da direita nacionalista no Ocidente. Hoje, no mesmo Reino Unido, o ciclo atinge um clímax.
O populismo devastou o sistema político-partidário britânico e lançou o berço da democracia parlamentar numa crise constitucional. A solução oferecida pela corrente radical do brexit é esvaziar a democracia de sua substância. O Povo contra o Parlamento —eis o estandarte do governo nacionalista de Boris Johnson.
No Reino Unido, a soberania popular reside, exclusivamente, no Parlamento. O referendo sobre a União Europeia (UE), um crasso erro de cálculo do primeiro-ministro David Cameron, inoculou o veneno plebiscitário na circulação sanguínea do parlamentarismo.
Cameron imaginava que obteria maioria pela permanência, pacificando um Partido Conservador cindido entre europeístas e eurocéticos. A derrota inesperada destruiu sua carreira, partiu o país ao meio e minou o poder do Parlamento.
O referendo foi um gesto de transferência pontual de soberania do Parlamento para os eleitores. Mas seu resultado colocou nas mãos das correntes eurocéticas um aríete que passou a ser utilizado em ofensivas populistas cada vez mais ousadas.
O acordo negociado entre a conservadora Theresa May e a UE foi derrubado com o auxílio dos eurocéticos do próprio Partido Conservador, que querem uma ruptura completa. No fim, a corrente radical substituiu May por Boris Johnson na chefia do governo.
Johnson, um oportunista incorrigível, oscilou muitas vezes entre o europeísmo e o antieuropeísmo. Mas, desde 2016, calculou que a adesão extremada à corrente eurocética o catapultaria ao cargo de primeiro-ministro.
Agora, diante da resistência parlamentar a uma saída da UE sem acordo, ele tenta reunir a direita nacionalista em torno de sua liderança. Nesse processo, converte o Partido Conservador numa seita de fanáticos do brexit e aposta todas as fichas no confronto com o Parlamento.
O povo não votou, três anos atrás, numa ruptura sem acordo —e as pesquisas de opinião indicam que a maioria dos eleitores não admite tal hipótese. Mas os eurocéticos invocam a “soberania popular” para forçar esse desenlace.
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Quando o acordo entre May e a UE foi derrubado pelo Parlamento britânico, a solução disponível era convocar um segundo referendo, para os eleitores decidirem sobre a saída sem acordo ou a desistência da ruptura com o bloco europeu. O caminho lógico dependia, porém, de uma forte iniciativa política do Partido Trabalhista, núcleo da oposição.
Sob a liderança de Jeremy Corbyn, um populista de esquerda e antigo eurocético, os trabalhistas preferiram a ambiguidade, jogando no desgaste dos conservadores. Assim, a esquerda antieuropeia montou o cenário para a ascensão da direita antieuropeia.
Johnson rejeitou a decisão da maioria parlamentar de proibir a saída sem acordo e, numa manobra que testa os limites da democracia britânica, suspendeu as atividades do Parlamento.
Sua solução para a crise constitucional é uma eleição geral em 15 de outubro, duas semanas antes do prazo fatal. Nesse caso, o primeiro-ministro lideraria a direita nacionalista numa campanha concebida como levante plebiscitário do Povo contra o Parlamento —ou seja, na linguagem do populismo de direita, como uma revolta da “nação de sangue” contra o “globalismo”.
O chefe do governo britânico prepara-se para o “assalto ao Céu”. Nisso, terá a torcida entusiasmada do cortejo de nacionalistas que se estende do americano Trump ao russo Putin, passando pelo húngaro Orbán e pelo brasileiro Jair Bolsonaro.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 7/9/2019