Quando as Torres Gêmeas foram atingidas, em 2001, o serviço secreto americano fez uma revisão dos seus procedimentos para descobrir por que um evento que poderia ter sido previsto, dadas as informações disponíveis antes, pegou o país de surpresa. Entre os achados, a conclusão de que o pensamento em grupo inibia ou ignorava a visão daqueles que pensavam “fora da caixa”. Era como se uma interpretação da realidade aceita pela maioria, por ser mais verossímil ou apenas mais atraente, se tornasse “realidade” e impedisse que se atentasse para sinais evidentes de que outras realidades eram possíveis.
No último dia de 2011, Geoffrey Wheatcroft voltou a um tema parecido em artigo publicado no The New York Times, intitulado “A World in Denial of What it Knows”, em que discute as coisas sabidas e ignoradas (“unkown knowns”). Basicamente, o artigo argumenta que a crise econômica resultou da opção (inconsciente?) da maioria de ignorar coisas que eram sabidas, mas inconsistentes com a realidade em que as pessoas preferiam acreditar.
Será que algo assim pode estar ocorrendo com o Brasil? Estaremos fazendo vista grossa para os riscos que corre a economia brasileira? Minha visão é que sim. Mais gente parece achar o mesmo. Luiz Stuhlberger resumiu essa percepção em entrevista ao O Estado de S. Paulo (25/12/2011): “O Brasil está bem, mas há sinais de que algo está errado”.
A forma como penso esse quadro é que estamos bem, mas convivemos com desequilíbrios dinâmicos que podem desencadear crises se o ambiente externo ficar menos favorável. Stuhlberger citou exemplos: “Imóvel está caro, nosso Big Mac é o mais caro do mundo, nosso Corolla é o mais caro do mundo, a nossa arte está ficando a mais cara do mundo. As vendas no varejo estão crescendo muito acima da indústria de transformação. (…). A razão investimento/consumo mostra o Brasil como um dos piores do mundo. O investimento público também é um dos mais baixos do mundo. Nossa previdência é a pior”.
A escalada do preço dos imóveis preocupa muita gente. No Rio, esses preços subiram em média 38% ao ano no último triênio, totalizando uma alta de 160% em três anos. Nesse meio tempo, o rendimento médio mensal das pessoas ocupadas na região metropolitana do Rio de Janeiro subiu 50%. Se antes era necessário trabalhar dez anos para comprar um imóvel, agora são precisos 17,3 anos.
Em dólar, a alta dos imóveis cariocas nesse triênio foi um pouco maior, de 169%. Esse aumento se compara com a alta de 80% no preço dos imóveis americanos no triênio 2002-05, auge da bolha imobiliária, que foi a maior elevação em um período de três anos nos EUA, pelo menos desde 1987.
Pode-se argumentar que o Rio é um caso especial: tem Olimpíadas, pacificação de favelas etc. Mas os números de São Paulo não são muito diferentes: no mesmo período, os imóveis ficaram 129% mais caros, enquanto o rendimento médio das pessoas ocupadas subiu 36%: se no início de 2008 se necessitava de 10 anos de trabalho para comprar um imóvel na cidade, agora são precisos 16,8 anos, a mesma alta que no Rio. A série nacional é mais curta, mas segue o mesmo padrão: alta média anual de 27% nos preços de imóveis, contra um aumento de rendimentos de 7,8%.
A taxa de câmbio parece outro preço fora do lugar. Em termos de taxa de câmbio efetiva real para as exportações de manufaturados, em 2011 o real esteve 36% mais apreciado que na média dos últimos 31 anos. De 2002 para cá, a apreciação foi de 71%. Nesses nove anos, o rendimento médio real subiu 7,3%, com uma alta de 13,4% no salário real por hora trabalhada na indústria. Considerando que a produtividade por hora trabalhada na indústria subiu apenas 10,6% nesse período, é fácil concluir que o custo unitário do trabalho em moeda estrangeira aumentou bastante desde 2002. Não admira que aqui o Big Mac e o Corolla custem tanto.
Dois fatores principais explicam o que parece “errado” na economia. Um, a forte alta do preço das exportações, de 143%, em dólar, entre 2002 e 2011. Isso impediu a expansão do déficit externo e sancionou um crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e, em especial, da demanda doméstica acima do potencial, além de elevar a riqueza percebida de muita gente.
Dois, a forte entrada de capitais no sexênio 2006-11. Somando grosseiramente os resultados anuais do balanço de pagamentos em percentagem do PIB, tem-se que nesse período o déficit acumulado em conta corrente foi de 8,1% do PIB, enquanto o superávit na conta capital e financeira somou 23,3% do PIB. Houve, portanto, uma sobra de 15,3% do PIB, dos quais, grosso modo, 9,5% do PIB foram parar nas reservas internacionais, com um pequeno impacto expansionista. Os demais 5,8% do PIB, porém, foram direto para estimular a economia.
Sem o preço favorável das commodities e a forte entrada de capitais, o real não teria se valorizado tanto, o crédito teria crescido menos, a demanda doméstica também, os juros estariam mais altos e, muito provavelmente, os imóveis, o Big Mac, o Corolla e a arte não estariam tão caros. Como reagir a esse estado de coisas não é óbvio, mas ignorá-lo não é boa opção.
Fonte: Valor Econômico, 06/01/2012
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