De todo o cacarejo marxista, pouco ou nada resta a honrar um arvoricídio para se imprimir livros, mas o velho alemão foi cuidadoso em criar uma terminologia confusa e atenta a filigranas para dar ares de originalidade à sua obra – de mais-valia a luta de classes pra baixo.
Com efeito, todo o seu pensamento resume-se apenas a uma fabulazinha panaca: se alguém no mundo possui algo, mesmo que não valha um centavo (como a roupinha do Chaves), foi por ter egoisticamente tomado para si a força, às espensas dos mais fracos, quando, na verdade, deveria ter compartilhado com todos. Todos os sistemas da Humanidade foram criados por este princípio. É a ideia mais pueril e boboca de que: 1) Se um tem, todos também devem ter; 2) Só existe um rico porque ele explora um pobre; 3) A soma de todas as pobrezas resulta em riqueza.
Qualquer criança que reflita sobre pobreza e riqueza pode chegar às mesmas conclusões, mas sem termos pomposos como “superestrutura” e “alienação pelo trabalho”. Assim, é difícil um sujeito ser marxista sem ter lido Marx, embora seu pensamento seja simplório, em termos complicadíssimos.
Infelizmente, o mesmo não se dá com Gramsci: o “intelectual coletivo” defendido por este autor nada mais é do que forçar a derrota do capitalismo (que seria natural, não revolucionária, em Marx) através de qualquer coisa que vá contra seu “projeto burguês”. Se em Marx não há espaço, senão como espectadores, para o Lumpenproletariat (unterste Gesellschaftsschicht ohne Klassenbewusstsein, ou seja, indivíduos sem consciência de classe, como assaltantes, delinquentes, prostitutas et caterva), em Gramsci esses são alçados à categoria de “intelectuais”, visto que são um “incômodo” ao capitalismo. Vale tudo para acabar com o liberalismo: mesmo queimar todos os livros de Shakespeare para fumar maconha com o papel.
Tudo, em Gramsci, converge para o Partidão: é o ideal fascista bruto, de que tudo é válido e virtuoso, desde que faça o Partido (o novo Príncipe maquiavélico) vencer. Abandona-se a Klassenbewusstsein, a consciência de classe de Marx, e deixa-se que a burocracia tome conta até de nosso pensamento. É facílimo, portanto, ser gramcista sem nunca ter sequer ouvido falar em Gramsci.
É exatamente o que ocorre com a esquerda brasileira: sem poder mais se declarar abertamente socialista, e tendo relações conflituosas com a social-democracia keynesiana, só resta mesmo mandar às favas os escrúpulos de consciência e simplesmente aquilatar o certo e o errado tão-somente pelo que será favorável eleitoralmente ao PT, e maléfico ao PSDB.
Vide o atual caso dos aiatolás atômicos apedrejadores.
Enquanto a imprensa mundial elogiava Lula por ter mantido as práticas de seu predecessor, enquanto todos acreditavam que ele boicotaria a dívida e reestatizaria companhias que dão muito mais dinheiro ao governo só em impostos sendo privatizadas (e já mostrei como a quitação da dívida com o FMI é uma farsa), os pensadores esquerdistas, nas Universidades, imprensa e onde mais apareciam, macaqueavam o namoro global com Lula (como se FHC não fosse não somente elogiado, como convidado para escrever sobre o mundo em toda essa mesma imprensa). Fingia-se ser um fato único na história desse país: e nossos críticos eruditos da Academia, patetas, acreditavam, mesmo negando o fato. (Não é de se estranhar, afinal, que a coluna Debates da Folha, que geralmente tem duas pessoas com opiniões diversas, foi trocada por uma página inteira com um tal de Mohsen Shaterzadeh, embaixador do Irã no Brasil, dizendo que o Brasil deu um passo crucial frente às nações “credoras da Segunda Guerra Mundial”, que não ouviram “as grandes nações – a saber, Brasil e Turquia, já que nem o Líbano ficou do lado do Irã – que, numa postura de respeito aos direitos humanos, configurando a “nova ordem mundial”. Urge comentar?)
Agora, os mesmos conscientes-cabeça de plantão entraram em mais um curto-circuito de sinapses: primeiro, acreditando que tudo o que pode ser de bom tem de ser via estatal, como sói à esquerda; depois, defendendo, ao mesmo tempo, direitos humanos, como se apenas o Estado (ou o Partido) pudessem provê-los; por fim, encetando amizade com qualquer facínora com alto grau de demência que vá contra as políticas “conservadoras” e “neoliberais” do que julgam ser a direita – mesmo que estes sejam os campeões em destruir os próprios “direitos humanos” que tanto defendem.
E aí, o que é mais importante para nossos progressistas: criticar um regime que mata mulheres por apedrejamento (enterrando-as até os ombros – ao contrário dos homens, que podem cobrir o rosto com as mãos – para serem alvejadas com pedras pequenas, que não as assassinem imediatamente, numa sevícia que dificilmente termina no inevitável traumatismo craniano em menos de uma hora), podendo render críticas ao Partido em ano eleitoral, ou se calar para não correr risco de render, quiçá, votos para o PSDB?
Não é preciso nem imaginar o que nossa elite progressita, preocupada com o sofrimento do mundo causado pelo capitalismo, preferiu: o silêncio.
E não se trata apenas de candidatos, mulheres inclusas, à presidência. O pensamento coletivizante contamina todos, até aqueles que juram de pés juntos que apenas têm um ideal X, e não um partido Z que seja a instituição que se coadune 100% com esse tal ideal. Quem pensa em nome do partido, amém, são intelectuais críticos, são professores universitários lutando pela “democracia”, são grupos que se dizem traídos pelo governo e minoritários. Está no blog de jornalistas gabaritados, mas também em cada tweet de cada pequeno esquerdista desse país, que não deram, literalmente, um pio contra o apedrejamento. São aqueles que lutam pela liberdade, inclusive a de pensamento.
É preferível que estatizem a Coca-Cola e o Google, mas que não obriguem os intelectuais a pensar em nome do Partido.
Lula, por sinal, junto a Turquia (que nega o holocausto de 1,5 milhões de armênios e 30 mil curdos, cujo artigo 301 do seu Código Penal foi invocado para perseguir Orhan Pamuk, depois de Salman Rushdie ser alvo de uma fatwa que o condena à pena de morte se descoberto por autoridades islâmicas em qualquer lugar do mundo), fora o único fantoche tosco a facilitar urânio para os mulás cabeças-de-toalha, sob argumento de que o regime que nega o direito de existência do Ocidente (apenas começando por Israel) tem fins “pacíficos”. Baseando-se em… sua amizade, claro. Nossos progressistas e nossas feministas, claro, apostam até agora que ele merece o Nobel da Paz por isso.
Enquanto tal, a Time publicava uma capa com uma menina afegã que teve nariz e orelha cortados pelo regime talibã. A mensagem sobre o que aconteceria se os EUA abandonassem o Afeganistão é até visual. Segundo nossa elite pensando pelo Partido, a capa foi um absurdo, pois isso justificaria qualquer invasão. Além de o termo invasão ser usado erroneamente aqui (o correto seria ocupação, erro que usam em sinal invertido quando se trata de invadir a reitoria), as Hintergedanken, suas intenções ocultas, são daquele misto de retardismo mental aplicado a um assunto de tamanha seriedade que não deveria ser tratado por crianças: combinação que gera morbidez inescapável.
O motejo molha-cama é o de que muitas coisas horríveis acontecem pelo mundo, e os EUA não fazem nada contra. Até entram em relações com a China. E que nada poderia ser melhor para o mundo do que ter mais países com armas nucleares, contra aquele único que já as usou em guerra – mesmo que seja um país de fanáticos religiosos que apedrejam mulheres e financia terroristas. É a própria chamada “Al Qaeda eletrônica”, como apelidava Reinaldo Azevedo, em ação em nome dos votos na Dilma.
É curioso imaginar como a política externa de Washington e do Ocidente (e até mesmo o Oriente civilizado, como o Japão, que sofre pressões hoje dos próprios americanos para, ora, se remilitarizar, já que a ameaça de fascismo japonês foi enterrada) é baseada em um lobby fortíssimo e mais famoso que a canhotice de Paul McCartney para que os países que queiram se aproveitar de sua forte economia sejam obrigados a serem mais humanitários. O antigo e invocado artigo 150 do código penal turco foi trocado pelo dúbio 301 por pressão da EU, já que a Turquia quer virar europeia. Afinal, ouvi dizer por aí que os EUA têm um embargo a Cuba, ou apenas eu sei disso?
Por outro lado, que talvez exija décadas escarafunchando os mais obscuros autores da civilização ocidental para se poder chegar a tão altaneiras conclusões, Francis Fukuyama (O Fim da História) e Michael Mandelbaum (The Ideas that Conquered the Word) demonstram que a sociedade liberal é fruto de ao menos três séculos de batalhas e conquistas, que culminaram com o fracasso da diplomacia sul-sul e, sobretudo, o fato culminante da história da política externa, resumido pelo filósofo Bem Parker, ao lembrar que “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades” (Amazing Fantasy #15) – ou seja, não importa quantas mulheres foram apedrejadas enquanto FHC estava no poder, como também quer esbravejar a turba gramscista, ele nunca afagou aiatolás com nervuras nos cornos, nem facilitou urânio para enforcadores de gays só para ser contra os EUA – ser, como se diz, de esquerda, afinal. Aliás, só com isso já ganhou a pecha de “neoliberal”, o pior epíteto que se pode ter nessa terra de panacas.
Para defender o Partidão, afinal, é melhor varrer até a aleivosia de “direitos humanos” para debaixo do tapete. Até se chegou à demência de comparar a trapalhada nas eleições americanas de 2000 com ser segurada pelo próprio marido (forçado) enquanto seu cunhado lhe corta à faca nariz e orelha. Vale ficar quietinho, fingindo que não é com você, enquanto seu candidato, por quem você abdica a totalidade da sua militância cicladiana, dá uma gaguejada e só peça que Ahmadinejad “mande-a para cá” por ela estar “causando incômodo” ao seu amiguinho (e negar, claramente, que tenha oferecido asilo à moça, antes de ver que pegou mal e mandar seu chanceler ser um pouco mais enfático). Lapidação? Não é assunto a ser tratado nem numa conversa de boteco.
Quem diz isso são os bobalhões encrustados em nossas universidades, já que ninguém cuida de lhes expulsar a pedradas, que afirmam que nunca votariam em opressores que são contra cotas, esses elitistas selvagens anti-Bolsa Família que moram todos em Higienópolis. O povinho bundalhóide que se acha crítico, que acha feio fazer piadas com negros, mulheres, gays e “minorias”, mas acha uma obrigação estatal fazer piada com judeus – e, por sinal, patrocinar regimes que não visam senão a sua extinção.
É a massa de manobra da turma “eu não sou petista, mas…” que se acha a vanguarda do pensamento por ter lido Marcuse, mas é incapaz de perceber que estatizaram e partidarizaram com tal gana sua capacidade de discernir uma pérola de um hipopótamo que agora pensam por legendas – enquanto um analfabeto nunca se submeteria a tal auto-hipnose.
Ser politicamente correto significa estar errado em tudo, mas ao menos fazer seu partido ganhar as eleições.
Brilhante!