De onde menos se espera, dizia o Barão de Itararé, daí é que não vem nada mesmo. Ninguém já espera muito do Supremo Tribunal Federal (STF). Mesmo assim, os ministros conseguiram ontem se superar.
Como dispõem da prerrogativa de determinar os próprios salários na proposta de Orçamento, eles aproveitaram para se conceder um aumento de 16,38%, correspondente, segundo o comunicado emitido pela Corte, “à recomposição dos subsídios com base na inflação apurada entre 2009 e 2014”.
Enquanto o país acumula mais de 12 milhões de desempregados, a dívida pública beira os 80% do Produto Interno Bruto (PIB) e o déficit fiscal previsto para 2018 está ao redor de R$ 160 bilhões, os meritíssimos ministros do Supremo acabam de tomar uma decisão que, embora não tenha alterado o custeio proposto para o próprio tribunal (mantido em R$ 741,4 milhões com cortes de despesas), poderá ter impacto desastroso no Orçamento do ano que vem.
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Isso ocorre porque o salário de um ministro do STF é considerado, por lei, o teto de todos os salários do funcionalismo público. Com o aumento, ele iria de R$ 33,3 mil para R$ 39,3 mil. O efeito imediato seria o reajuste nos salários de todos os juízes federais, com impacto estimado de R$ 717 milhões em 2019. Mas o rombo não ficaria por aí, pois os tribunais estaduais e ministérios públicos poderiam, em tese, adotar o novo limite como pretexto para reajustes.
Ministros que defenderam o aumento afirmam que, desde 2015, quando os salários foram reajustados pela última vez, a inflação acumulou 24,7%. Levantam ainda as dificuldades enfrentadas por juízes aposentados e pensionistas do Judiciário. Ora, tais argumentos são uma mistura de fantasia com irresponsabilidade.
Basta contrastar a situação do funcionalismo com o setor privado, onde a saúde financeira das corporações é mantida graças a reajustes que não repõem a inflação e ondas de cortes e demissões. No Brasil, entre 1995 e 2015, o prêmio salarial pago a alguém apenas por ser funcionário público cresceu de 50,7% para 93,5%, segundo a análise dos economistas Naércio Menezes e Gabriel Nemer.
Nesse ambiente de privilégios, o Judiciário e o Ministério Público concentram uma fatia ainda mais privilegiada. De acordo com os últimos dados do CNJ, quase dois terços dos juízes recebem proventos acima do teto, graças ao expediente maroto de estender para muito além do razoável as verbas indenizatórias, excluídas do teto para cálculo do limite.
É o caso do famigerado auxílio-moradia, pago a algo como 17 mil juízes e 13 mil procuradores, graças a uma liminar emitida pelo ministro Luiz Fux em 2014, até hoje à espera de julgamento no plenário da Corte. A ampla maioria dos que ganham mora na cidade onde trabalha – e mesmo casais de juízes que moram no mesmo imóvel insistem em manter a regalia dobrada. A mamata do auxílio-moradia já superou R$ 5 bilhões em custo aos cofres públicos.
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Os privilégios não param por aí. Em 2015, a revista Época identificou 32 tipos diferentes de benesses usadas para aumentar os contracheques de juízes e procuradores. O economista Nelson Marconi, da FGV, revelou em estudo de 2016 distorções absurdas na remuneração do Judiciário.
De acordo com os dados dele, um desembargador recebia R$ 56 mil (líquidos) em Minas Gerais, R$ 52 mil em São Paulo e R$ 38 mil no Rio de Janeiro. No Reino Unido, um juiz nessa posição ganhava R$ 29 mil. Nos Estados Unidos, R$ 43 mil. Os valores superavam ainda os ganhos de ministros da Suprema Corte em países como Bélgica ou Portugal – sem levar em conta o custo de vida, bem maior nos países ricos.
Em sua tese de doutorado, a pesquisadora Luciana Zaffalon Cardoso verificou absurdos semelhantes no Ministério Público paulista. Em 2015, último ano para o qual havia dados disponíveis, 1.860 dos 1.920 procuradores do estado receberam acima do teto constitucional, 6% mais que o dobro.
Juízes e procuradores formam uma casta detentora de privilégios injustificáveis diante da realidade, uma elite dentro da elite do funcionalismo público. Num país em que um salário de R$ 27 mil basta para considerar alguém rico, pois o põe entre o 1% mais bem remunerado, os ganhos no Judiciário e no Ministério Público são escandalosos.
Ninguém nega a necessidade de remunerar juízes e procuradores de modo compatível com seus conhecimentos e competência. Mas o custo do Judiciário brasileiro, R$ 85 bilhões em 2016, ou mais de 1,2% do PIB, é simplesmente irreal. De acordo com dados compilados pelo pesquisador Luciano da Ros, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, esse patamar é de 0,3% na Alemanha, 0,2% na Itália e 0,14% nos Estados Unidos.
Caberia aos ministros do STF entender a dimensão da crise fiscal que ameaça o Brasil, ter noção das distorções que os beneficiam e, como representantes maiores da Justiça no país, dar o exemplo. Em vez disso, deram mostra do corporativismo mais mesquinho e abjeto.
Com exceção, obviamente, daqueles que, cientes da indecência que estavam prestes a cometer, votaram contra o disparate. A eles, os brasileiros devem o devido reconhecimento. Muito obrigado pela demonstração de caráter e bom senso, ministros Cármen Lúcia, Rosa Weber, Celso de Mello e Edson Fachin.
Fonte: “G1”, 09/08/2018