Dez anos atrás, o colombiano Plinio Apuleyo Mendoza, o cubano Carlos Alberto Montaner e eu escrevemos “Manual do perfeito idiota latino-americano”, livro que criticava os líderes políticos e formadores de opinião que, apesar de todas as provas em contrário, se apegam a mitos políticos mal concebidos. A espécie “Idiota”, dizíamos então, era responsável pelo subdesenvolvimento da América Latina. Tais crenças – revolução, nacionalismo econômico, ódio aos Estados Unidos, fé no governo como agente da justiça social, paixão pelo regime do homem forte em lugar do regime da lei – tinham origem, em nossa opinião, no complexo de inferioridade. No fim dos anos 1990, parecia que os idiotas estavam finalmente em retirada. Mas o recuo durou pouco. Hoje, a espécie retornou na forma de chefes de Estado populistas empenhados em aplicar as mesmas políticas fracassadas no passado. Em todo o mundo, há formadores de opinião prontos a lhes dar credibilidade e simpatizantes ansiosos por conceder vida nova a idéias que pareciam extintas.
Por causa da inexorável passagem do tempo, os jovens idiotas latino-americanos preferem as baladas pop de Shakira aos mambos do cubano Pérez Prado e não cantam mais hinos da esquerda, como “A Internacional e Hasta Siempre, Comandante“. Mas eles ainda são os mesmos descendentes de migrantes rurais, de classe média e profundamente ressentidos com a vida fútil dos ricos que vêem nas revistas de fofocas, folheadas discretamente nas bancas. Universidades públicas fornecem a eles uma visão classista da sociedade, baseada na ideia de que a riqueza precisa ser tomada das mãos daqueles que a roubaram. Para esses jovens idiotas, a situação atual da América Latina é resultado do colonialismo espanhol e português, seguido do imperialismo dos Estados Unidos. Essas crenças básicas fornecem uma válvula de segurança para suas queixas contra uma sociedade que oferece pouca mobilidade social. Freud poderia dizer que eles têm o ego fraco, incapaz de fazer a mediação entre seus instintos e a sua ideia de moralidade. Em lugar disso, suprimem o conceito de que a ação predatória e a vingança são erradas e racionalizam a própria agressividade com noções elementares do marxismo.
Os idiotas latino-americanos tradicionalmente se identificam com os caudilhos, figuras autoritárias quase sobrenaturais que têm dominado a política da região, vociferando contra a influência estrangeira e as instituições republicanas. Dois líderes, particularmente, inspiram o Idiota de hoje: os presidentes Hugo Chávez, da Venezuela, e Evo Morales, da Bolívia. Chávez é visto como o perfeito sucessor do cubano Fidel Castro (a quem o Idiota também admira): ele chegou ao poder pelas urnas, o que o libera da necessidade de justificar a luta armada, e tem petróleo em abundância, o que significa que pode bancar suas promessas sociais. O Idiota também credita a Chávez a mais progressista de todas as políticas – ter colocado as Forças Armadas, paradigma do regime oligárquico, para trabalhar em programas sociais. De sua parte, o boliviano Evo Morales tem um apelo indigenista. Para o Idiota, o antigo plantador de coca é a reencarnação de Tupac Katari, um rebelde aimará do século XVIII que, antes de ser executado pelas autoridades coloniais espanholas, profetizou: “Eu voltarei e serei milhões”. O Idiota acredita em Morales quando ele alega falar pelas massas indígenas, do sul do México aos Andes, que buscam reparação pela exploração sofrida em 300 anos de domínio colonial e outros 200 anos de oligarquia republicana.
A visão de mundo do Idiota, vez por outra, encontra eco entre intelectuais ilustres na Europa e nos Estados Unidos. Esses pontificadores aliviam o peso na consciência apoiando causas exóticas em países em desenvolvimento. Suas opiniões atraem fãs entre os jovens do Primeiro Mundo, para os quais a fobia da globalização oferece a perfeita oportunidade de encontrar satisfação espiritual na lamentação populista do Idiota latino-americano contra o perverso Ocidente.
Não há nada de original no fato de intelectuais do primeiro mundo projetarem suas utopias sobre a América Latina. Cristóvão Colombo chegou por acaso à América em um tempo em que as idéias utópicas da Renascença estavam em voga. Desde o início, os conquistadores descreveram as terras encontradas como nada menos que paradisíacas. O mito do bom selvagem – a ideia de que os nativos do Novo Mundo tinham uma bondade imaculada, não manchada pelas maldades da civilização – impregnou a mente européia. A tendência de usar a América como uma válvula de escape para a frustração com os insuportáveis conforto e abundância da civilização ocidental continuou por séculos. Pelos anos 60 e 70, quando a América Latina estava repleta de organizações terroristas marxistas, esses grupos violentos encontraram apoio maciço na Europa e nos Estados Unidos entre pessoas que nunca teriam aceitado um regime totalitário no estilo de Fidel Castro em seu próprio país.
O atual ressurgimento do Idiota latino-americano precipitou o retorno de seus correspondentes: os idiotas paternalistas europeus e americanos. Mais uma vez, importantes acadêmicos e escritores estão projetando seu idealismo, sua consciência cheia de culpa ou as queixas contra sua própria sociedade no cenário latino-americano, emprestando seu nome a abomináveis causas populistas. Ganhadores do Nobel, incluindo o dramaturgo inglês Harold Pinter, o escritor português José Saramago e o economista americano Joseph Stiglitz, lingüistas americanos como Noam Chomsky e sociólogos como James Petras, jornalistas europeus como Ignacio Ramonet e alguns de veículos como Le Nouvel Observateur, na França, Die Zeit, na Alemanha, e Washington Post, nos Estados Unidos, estão mais uma vez propagando absurdos que moldam as opiniões de milhões de leitores e santificam o Idiota latino-americano. Esse lapso intelectual seria praticamente inócuo se não tivesse conseqüências. Mas, pelo fato de legitimar um tipo de governo que está no âmago do subdesenvolvimento econômico e político da América Latina, esse lapso se constitui numa forma de traição intelectual.
UM AMOR ESTRANGEIRO
O exemplo mais notável da simbiose entre alguns intelectuais ocidentais e os caudilhos latino-americanos é a relação amorosa entre os idiotas americanos e europeus e Hugo Chávez. O líder venezuelano, apesar das tendências nacionalistas, não hesita em citar estrangeiros em seus pronunciamentos para fortalecer suas opiniões. Basta ver o discurso de Chávez na ONU, no ano passado, no qual exaltou o livro de Chomsky “Hegemonia ou Sobrevivência: a Busca da América pelo Domínio Global”. Do mesmo modo, em apresentações no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Chomsky apontou a Venezuela como um exemplo para o mundo em desenvolvimento, elogiando políticas sociais bem-sucedidas nas áreas de educação e assistência médica, que teriam resgatado a dignidade dos venezuelanos. Ele também expressou admiração pelo fato de “a Venezuela ter desafiado com sucesso os Estados Unidos, um país que não gosta de desafios, menos ainda quando são bem-sucedidos”.
Na realidade, os programas sociais da Venezuela têm se tornado, com a ajuda dos serviços de inteligência cubanos, veículos para cooptar e criar dependência social do governo. Além disso, sua eficácia é suspeita. O Centro de Documentação e Análise Social da Federação Venezuelana de Professores, instituto de pesquisas do sindicato da categoria, relatou que 80% dos domicílios venezuelanos tinham dificuldades em cobrir as despesas com comida em 2006 – a mesma proporção de quando Chávez chegou ao poder, em 1999, e quando o preço do barril de petróleo era um terço do atual. Quanto à dignidade das pessoas, a verdade é que, desde que Chávez se tornou presidente, ocorrem 10.000 homicídios por ano na Venezuela, dando ao país a maior taxa de assassinatos per capita do mundo.
Outra nação pela qual alguns formadores de opinião americanos têm uma queda é Cuba. Em 2003, o regime de Fidel Castro executou três jovens que haviam seqüestrado um barco e tentado escapar da ilha. Fidel também mandou 75 ativistas democratas para a prisão por terem emprestado livros proibidos. Como resposta, James Petras, há anos professor de sociologia da State University of New York, em Binghamton, escreveu um artigo intitulado “A responsabilidade dos intelectuais: Cuba, os Estados Unidos e direitos humanos”. Em seu texto, que foi reproduzido por várias publicações esquerdistas em todo o mundo, defendeu Havana argumentando que as vítimas estavam a serviço do governo americano.
Conhecido simpatizante de Fidel, Ignacio Ramonet, editor do Le Monde Diplomatique, jornal francês que advoga qualquer causa sem graça que tenha origem no Terceiro Mundo, sustenta que a globalização tornou a América Latina mais pobre. A verdade é que a pobreza foi modestamente reduzida nos últimos cinco anos. A globalização gera tanta receita aos governos latino-americanos com a venda de commodities e com os impostos pagos pelos investidores estrangeiros que eles têm distribuído subsídios aos mais pobres – o que dificilmente é uma solução para a pobreza a longo prazo.
Com duas décadas de atraso, Harold Pinter fez uma avaliação espantosa do governo sandinista em seu discurso de aceitação do Nobel em 2005. Acreditando talvez que uma defesa dos populistas do passado poderia ajudar os populistas de hoje, ele disse que os sandinistas tinham “aberto o caminho para estabelecer uma sociedade estável, decente e pluralista” e que não havia “registro de tortura” ou de “brutalidade militar oficial ou sistemática” sob o governo de Daniel Ortega, nos anos 80. Alguém pode se perguntar, então, por que os sandinistas foram apeados do poder pelo povo da Nicarágua nas eleições de 1990. Ou por que os eleitores os mantiveram fora do poder durante quase duas décadas – até Ortega se transformar num travesti político, declarando-se defensor da economia de mercado. Quanto à negação das atrocidades sandinistas, Pinter faria bem em lembrar o massacre dos índios misquitos, em 1981, na costa atlântica da Nicarágua. Sob a fachada de uma campanha de alfabetização, os sandinistas, com a ajuda de militares cubanos, tentaram doutrinar os misquitos com a ideologia marxista. Os índios recusaram-se a aceitar o controle sandinista. Acusando-os de apoiar os grupos de oposição baseados em Honduras, os homens de Ortega mataram cinqüenta índios, prenderam centenas e reassentaram à força outros tantos. O ganhador do Nobel deveria lembrar também que seu herói Ortega se tornou um capitalista milionário graças à distribuição dos ativos do governo e de propriedades confiscadas, que os líderes sandinistas repartiram entre si após a derrota nas eleições de 1990.
O entusiasmo com o populismo latino-americano se estende a jornalistas dos principais veículos de comunicação. Tome como exemplo algumas matérias escritas por Juan Forero, do Washington Post. Ele é mais equilibrado e informado do que os luminares mencionados acima, mas, de vez em quando, revela um estranho entusiasmo pelo populismo do tipo que está varrendo a região. Em um artigo recente sobre a generosidade estrangeira de Chávez, ele e seu colega Peter S. Goodman criaram uma imagem positiva da forma como Chávez ajuda alguns países a se desfazer da rigidez imposta por agências multilaterais quando emprestam dinheiro para essas nações poderem quitar suas dívidas. Defensores dessa política foram citados favoravelmente e nenhuma menção foi feita ao fato de que o dinheiro do petróleo da Venezuela pertence ao povo venezuelano, e não a governos estrangeiros ou entidades alinhadas com Chávez, ou que esses subsídios têm limitações políticas. É o que se vê no ataque do presidente da Argentina, Néstor Kirchner, aos Estados Unidos e na louvação a Chávez, respostas evidentes à promessa feita por Chávez de comprar novos bônus da dívida argentina.
O PROBLEMA COM O POPULISMO
Observadores estrangeiros estão deixando de compreender um ponto essencial: o populismo latino-americano nada tem a ver com justiça social. No início, no século XIX, era uma reação ao estado oligárquico na forma de movimentos de massa liderados por caudilhos, cujo mantra era culpar as nações ricas pela má situação da América Latina. Esses movimentos baseavam sua legitimidade no voluntarismo, no protecionismo e na maciça redistribuição de riqueza. O resultado, por todo o século XX, foram governos inchados, burocracias sufocantes, subserviência das instituições judiciais à autoridade política e economias parasitárias.
Populistas têm características básicas comuns: o voluntarismo do caudilho como um substituto da lei, a impugnação da oligarquia e sua substituição por outro tipo de oligarquia, a denúncia do imperialismo (com o inimigo sempre sendo os Estados Unidos), a projeção da luta de classes entre os ricos e os pobres para o terreno das relações internacionais, a idolatria do estado como uma força redentora dos pobres, o autoritarismo sob a aparência de segurança de estado e clientelismo, uma forma de paternalismo pela qual os empregos públicos – em oposição à geração de riqueza – são os canais de mobilidade social e uma forma de manter o voto cativo nas eleições. O legado dessas políticas é claro: quase metade da população da América Latina é pobre, com mais de um em cada cinco vivendo com 2 dólares ou menos por dia. E entre 1 milhão e 2 milhões de migrantes procurando os Estados Unidos e a Europa a cada ano em busca de uma vida melhor.
Mesmo na América Latina parte da esquerda está fazendo a transição, afastando-se da Idiotice – semelhante ao tipo de transição mental que a esquerda européia, da Espanha à Escandinávia, fez décadas atrás, quando, de má vontade, abraçou a democracia liberal e a economia de mercado. Na América Latina, pode-se falar em uma “esquerda vegetariana” e uma “esquerda carnívora”. A esquerda vegetariana é representada por líderes como o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, e o presidente costa-riquenho, Oscar Arias. Apesar da retórica carnívora ocasional, esses líderes têm evitado os erros da antiga esquerda, como uma barulhenta confrontação com o mundo desenvolvido e a devassidão monetária e fiscal. Eles se adaptaram à conformidade social-democrata e relutam em fazer grandes reformas, mas apresentam um passo positivo no esforço para modernizar a esquerda.
Em contrapartida, a esquerda “carnívora” é representada por Fidel Castro, Hugo Chávez, Evo Morales e pelo presidente do Equador, Rafael Correa. Eles se prendem a uma visão marxista da sociedade e a uma mentalidade da Guerra Fria que separa o Norte do Sul e buscam explorar as tensões étnicas, particularmente na região andina. A sorte inesperada com o petróleo obtida por Hugo Chávez está financiando boa parte dessa empreitada. A gastronomia de Néstor Kirchner, da Argentina, é ambígua. Ele está situado em algum ponto entre os carnívoros e os vegetarianos. Desvalorizou a moeda, instituiu controles de preços e nacionalizou ou criou empresas estatais nos principais setores da economia. Mas tem evitado excessos revolucionários e pagou a dívida argentina com o Fundo Monetário Internacional (FMI), ainda que com a ajuda do crédito venezuelano. A posição ambígua de Kirchner tem ajudado Chávez, que preencheu o vácuo de poder no Mercosul para projetar sua influência na região.
Estranhamente, muitos europeus e americanos “vegetarianos” apóiam os “carnívoros” da América Latina. Um exemplo é Joseph Stiglitz, que tem defendido os programas de nacionalização na Bolívia de Morales e na Venezuela de Chávez. Numa entrevista para a rádio Caracol, da Colômbia, Stiglitz disse que as nacionalizações não deveriam causar apreensão porque “empresas públicas podem ser muito bem-sucedidas, como é o caso do sistema de pensões da Seguridade Social nos Estados Unidos”. Stiglitz, porém, não defendeu a nacionalização das principais empresas privadas ou de capital aberto de seu país e parece ignorar que, do México para baixo, nacionalizações estão no centro das desastrosas experiências populistas do passado.
Stiglitz também ignora o fato de que na América Latina não há uma separação real entre as instituições do estado e o governo. Empresas estatais rapidamente se tornam canais para patronato político e corrupção. A principal empresa de telecomunicações da Venezuela tem sido uma história de sucesso desde que foi privatizada, no início dos anos 1990. O mercado de telecomunicações experimentou um crescimento de 25% nos últimos três anos. Em contrapartida, a gigante estatal de petróleo tem visto sua receita cair sistematicamente. A Venezuela produz hoje quase 1 milhão de barris de petróleo menos do que produzia nos primeiros anos desta década. No México, onde o petróleo também está nas mãos do governo, o projeto Cantarell, que representa quase dois terços da produção nacional, vai perder metade de seu rendimento nos próximos dois anos por causa da baixa capitalização.
É realmente importante o fato de que os intelectuais americanos e europeus matam sua sede pelo exótico promovendo idiotas latino-americanos? A resposta inequívoca é sim. Uma luta cultural está sendo deflagrada na América Latina – entre aqueles que querem colocar a região no firmamento global e vê-la emergir como um importante colaborador para a cultura ocidental, à qual seu destino está associado há cinco séculos, e aqueles que não conseguem aceitar essa idéia e resistem. Apesar de a América Latina ter experimentado algum progresso nos últimos anos, essa tensão está impedindo seu desenvolvimento em comparação com outras regiões do mundo – como o Leste Asiático, a Península Ibérica ou a Europa Central – que, há pouco tempo, eram exemplos de atraso. Nas últimas três décadas, a média de crescimento anual do PIB da América Latina foi de 2,8% – contra 5,5% do Sudeste Asiático e a média mundial de 3,6%.
Esse fraco desempenho explica por que quase 45% da população ainda está na pobreza e por que, depois de um quarto de século de regime democrático, pesquisas feitas na região revelam uma profunda insatisfação com instituições democráticas e partidos tradicionais. Enquanto o Idiota latino-americano não for relegado aos arquivos históricos – algo difícil de acontecer enquanto tantos espíritos condescendentes no mundo desenvolvido continuarem a lhe dar apoio –, isso não vai mudar.
* Álvaro Vargas Llosa é diretor do Centro para a Prosperidade Global do Instituto Independente, em Washington. Reproduzido com permissão do Foreign Policy nº 160 (maio/junho 2007) – www.foreignpolicy.com. Copyright 2007, Carnegie Endowment for Internacional Peace
Fonte: Revista “Veja”, maio de 2007
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