O que explica os anúncios com fanfarra pelo governo federal de “cortes” orçamentários, considerando que tais ações há décadas são corriqueiramente feitas através de decretos de contingenciamento de baixa visibilidade?
Entendidos como ataques políticos a setores que têm se mostrado hostis ao bolsonarismo, os cortes anunciados parecem ter tido um claro propósito estratégico: aumentar a visibilidade do déficit fiscal que é o leitmotiv da reforma da Previdência. Em outras palavras, o que se busca é o efeito de “priming” sobre a questão fiscal.
A truculência dos anúncios —cortes muito elevados (30%) em setores variados— não é gratuita: há método na loucura. Não há emergência federal —e.g. hiperinflação, crise cambial— que os justifique.
A reação exacerbada aos cortes —de manifestações de reitores a protestos de discentes— foi consistente com a lógica política que os informou. Tais eventos levaram o núcleo duro do bolsonarismo a uma ampla contrarreação nas redes sociais publicizando fatos bizarros ocorridos nas universidades públicas. Nessas arenas e sobre esses temas o bolsonarismo tem vantagem comparativa.
Assim, nem tudo é positivo para o governo; ocorreu, de fato, desgaste junto a setores da opinião pública expostos à narrativa do ataque às instituições públicas. Houve “overkill” nos anúncios que acabaram sendo vendidos como mero contingenciamento. O saldo líquido, no entanto, é favorável ao governo, tendo em vista seu objetivo estratégico.
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O “shutdown” do governo não é fato isolado e envolve duas outras iniciativas. Em primeiro lugar, a estratégia de apresentação da reforma da Previdência como um plano A cuja não aprovação deflagraria o plano B, envolvendo a entrega ao Legislativo da responsabilidade pela definição do orçamento, que seria integralmente desvinculado.
A segunda é a ameaça de suspensão de desembolsos caso o projeto de lei do Executivo solicitando crédito suplementar no valor de R$ 248 bi para pagamento de pensões e BCP não seja aprovado. A ameaça inédita está ancorada na regra de ouro: dispositivo constitucional que impede a emissão de dívida para pagamento de despesas correntes.
A literatura sobre os “shutdowns” do governo nos EUA —que chegaram a 22 desde 1976— conclui que eles aumentam a visibilidade das decisões públicas, e lá a claridade de responsabilidade é facilitada pelo bipartidarismo.
O nosso arremedo de “shutdown” é distinto porque indireto: visa criar um senso difuso de emergência, ligando indiretamente o fiscal à Previdência. E aumentar os custos da não aprovação pela maioria legislativa e por atores que dela querem se beneficiar sem incorrer nos custos de sua aprovação.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 13/05/2019