O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, marcou para a próxima quinta-feira um julgamento de importância vital não apenas para a Operação Lava Jato e o combate à corrupção, mas para toda a Justiça brasileira: a decisão sobre o momento em que réus condenados devem começar a cumprir a pena.
Pela interpretação em vigor desde 2016, um condenado vai preso depois da decisão da segunda instância, por um tribunal composto por mais de um julgador. Mas a Constituição Federal estabelece, numa cláusula pétrea, que ninguém pode ser considerado culpado antes de esgotados todos os recursos jurídicos a que tem direito.
O Supremo tem permitido, portanto, que condenados sejam presos sem que sejam formalmente considerados culpados. Foi assim até um julgamento de 2009, quando a Corte estabeleceu que os réus tinham direito de recorrer em liberdade até a decisão da última instância – momento em que deixa de haver possibilidade de recurso, identificado pela expressão jurídica “trânsito em julgado”.
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Em fevereiro de 2016, em meio às sentenças da Lava Jato, o STF voltou a alterar sua interpretação da lei e autorizou a prisão depois da decisão da segunda instância. Para isso, lançou mão de dois argumentos. Primeiro, é na segunda instância que se esgota a fase de apuração das provas e comprovação dos fatos. É nela que se estabelece a culpa. Recursos especiais ou extraordinários posteriores dizem respeito apenas a questões relativas ao trâmite processual.
O segundo argumento ganhou maior ressonância: deixar os réus livres até a decisão da última instância é um incentivo à impunidade. Quem pode pagar bons advogados protela os processos até onde consegue, em muitos casos até que os crimes prescrevam. Adiar o cumprimento das penas equivale a permitir que criminosos deixem de acertar as contas com a sociedade.
Desde fevereiro de 2016, o STF reiterou por outras três vezes a mesma interpretação, a última delas no julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em abril do ano passado. Na ocasião havia apreensão sobre o efeito da decisão nas sentenças da Lava Jato, em especial quanto ao voto da ministra Rosa Weber.
Rosa se manifestara diversas vezes contra a prisão depois da decisão de segunda instância, mas acabou votando por manter Lula na cadeia, em nome do respeito às decisões coletivas, argumento jurídico conhecido como “princípio da colegialidade”. Deixou claro, contudo, que votaria de outro modo se estivesse tomando uma decisão de caráter geral, não específica ao caso de Lula.
É justamente uma decisão dessa natureza que exigem as três Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) pautadas por Toffoli para o julgamento de quinta-feira. Desde de 2016, o STF só se manifestou a respeito do assunto em casos particulares, abrindo flanco para decisões de ocasião e para a insegurança jurídica. Promete tomar agora, enfim, uma decisão de caráter definitivo.
Qual será ela? Num momento de refluxo da Lava Jato e avanço da ala garantista, já demonstrado em diversas decisões recentes (leia mais aqui), é improvável que o Supremo mantenha as coisas como estão. Mas também é impensável que mande soltar, da noite para o dia, os 190 mil presos em virtude de decisões de segunda instância que aguardam o julgamento de recursos superiores.
O mais provável é que tente alguma solução intermediária. O próprio Toffoli sugeriu, em julgamentos anteriores, que se aguarde uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a terceira instância, para executar as penas. Também que, no caso de condenações pelo tribunal do júri (em crimes mais graves como homicídios), a pena seja executada logo depois da decisão da primeira instância.
A opinião do tribunal está dividida. De um lado, a ala garantista votará por manter expressamente a noção de “culpa” expressa na Constituição e só executar a pena depois da decisão da última instância. Já se manifestaram a favor dessa interpretação os ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello. Sobre tais votos, não há dúvida.
Do outro lado, a ala punitivista vê nisso um risco de ampliação da impunidade e prefere manter a interpretação atual. Estão nesse grupo os ministros Edson Fachin, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso. Este último, no julgamento do habeas corpus de Lula, apresentou um dado convincente: só 1,6% das decisões são alteradas depois da segunda instância – e em apenas 0,6% dos casos os condenados são absolvidos. Sobre esses três votos, também não há dúvida. O ministro Alexandre de Moraes tem também votado com essa ala.
O ministro Gilmar Mendes já se manifestou em favor da sugestão de Toffoli. Haveria, então, mais dois votos para a ala garantista, embora com uma interpretação mais permissiva do texto constitucional. Tanto Gilmar quanto Toffoli já mudaram de opinião sobre o assunto desde o julgamento de fevereiro de 2016. Bastaria, em tese, o voto de Rosa para concluir a votação em favor dos garantistas. Ela é contrária à interpretação em vigor, mas sempre faz mistério sobre seu voto e, da última vez, surpreendeu.
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Há, por fim, a ministra Cármen Lúcia, que votou desde 2009 em favor das prisões depois da decisão da segunda instância, mas fez uma inflexão na direção da ala garantista no julgamento que cancelou a primeira sentença proferida pelo atual ministro Sergio Moro na Lava Jato, em virtude de um erro na ordem dos depoimentos dos réus. Não se sabe se mudou de opinião sobre a execução das penas.
É patente a inclinação do STF por rever a interpretação em vigor desde 2016 e por adotar uma postura mais leniente com os réus. Será a decisão definitiva sobre o assunto. A prevalecer a sugestão de Toffoli, porém, permanecerá a contradição entre o decidido pelo tribunal e a noção expressa na Constituição de que ninguém pode ser considerado culpado até que todos os recursos estejam esgotados.
Se a prisão em segunda instância parecia um casuísmo, pelo menos seguia a prática histórica não apenas no Brasil, mas em diversos países. Tem respaldo no Código Penal e favorece o combate à corrupção. O Supremo se prepara agora para aprovar um outro casuísmo, desta vez favorável à impunidade.
Fonte: “G1”, 15/10/2019