Como pode ter todos os francos que quiser vender, o BC suíço pode sustentar indefinidamente o câmbio
“A Itália viveu 30 anos sob os Bórgias e [os italianos] tiveram guerras, terror, assassinato e derramamento de sangue, mas nos deram Michelangelo, Da Vinci e a Renascença. Na Suíça, eles têm amor fraterno e 500 anos de democracia e paz, e o que eles produziram? O relógio cuco!”
Orson Welles foi mais ácido sobre a Suíça do que o merecido. Fosse ainda vivo, poderia contemplar a outra inovação helvética: um regime de metas para a inflação em que o banco central persegue também um objetivo para a taxa de câmbio.
Na semana passada, o Banco Nacional Suíço (SNB) afirmou que não permitirá que € 1 custe menos do que 1,20 franco e que, para tal, está disposto a comprar tantos quantos forem necessários para manter seu custo ao menos naquele patamar. Posto de outra forma: o SNB se comprometeu a vender todos os francos requeridos para conservar a paridade.
Assim, diferentemente do caso usual dos países que precisam vender moeda estrangeira para manter a taxa de câmbio, e eventualmente são forçados a abandoná-la por falta de reservas, o SNB não sofre tal restrição. Como tem o poder de criar toda a moeda local que quiser vender, ele seria capaz, desse ponto de vista, de sustentar indefinidamente o câmbio.
De uma perspectiva distinta, porém, há outro desafio, a saber, se será possível conciliar a meta para a inflação (“abaixo de 2%”, segundo sua definição de estabilidade de preços) com a promessa implícita de emissão sem limites de moeda para estancar a apreciação.
Em geral, isso não é factível, mas algumas condições específicas do caso suíço sugerem que, ao menos inicialmente, o SNB conseguirá servir a dois senhores.
A começar porque a inflação em 12 meses se encontra ao redor de 0,5% e tem ficado sistematicamente bem abaixo da meta desde o final de 2008.
Adicionalmente, a Selic alpina (Saron) se encontra próxima de zero, o que limita a capacidade do SNB de estimular a atividade econômica (e a inflação) pelos canais convencionais de política monetária.
Sob tais condições, a fixação de um valor mínimo para o euro -à medida que é também um compromisso de emissão de moeda- pode ajudar a trazer a inflação de volta a patamares próximos de 2%.
Em outras palavras, essa política tem data de validade, dada pela velocidade de aproximação da inflação à meta. Quando houver sinais de convergência, as políticas colidirão, como de hábito, e o SNB terá de escolher uma delas, no caso, se meu palpite vale qualquer coisa, a meta da inflação.
Cabe notar, contudo, que o desemprego suíço não parece muito distante daquele compatível com a meta (a inflação baixa aparenta resultar mais da apreciação da moeda do que da baixa atividade doméstica), o que sugere a possibilidade de uma convergência mais rápida. De qualquer forma, a escolha não é para logo.
O caso suíço, por sua especificidade, ilustra bem os limites que a fixação da taxa de câmbio enfrentaria em outros países (penso, é claro, no Brasil, mas sugiro que olhem o que vem ocorrendo, por exemplo, em Hong Kong).
Onde a inflação já é elevada, uma tentativa de depreciação na marra da taxa de câmbio colidiria de saída com o objetivo de controle inflacionário, não apenas pela transmissão imediata dos preços internacionais aos domésticos, mas principalmente pela perda de autonomia da política monetária se formos levar a sério o compromisso de compra de toda moeda estrangeira.
Na prática, teríamos uma repetição, em escala maior, dos problemas observados no começo deste ano. Por um lado, deixaríamos de ter o efeito desinflacionário da moeda mais forte; por outro, a política monetária mais frouxa, no contexto de um mercado de trabalho bem mais apertado do que na Suíça, não precisaria de muito estímulo para se traduzir em maiores pressões sobre os preços domésticos.
No final, nem Michelangelo nem relógio cuco. Só uma aceleração inflacionária digna dos Bórgias.
Fonte: Folha de S. Paulo, 14/09/2011
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