Por Kleber Luiz Zanchim e Paulo Doron Rehder de Araujo*
A ampla calçada em frente à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da USP, tem donos: por volta de 30 pessoas acomodam suas roupas e colchões ao longo das paredes da faculdade e ocupam a área por todo o dia.
À noite, somam-se mais umas 50, cada qual com seu espaço. O histórico Território Livre -palco de manifestações das mais importantes, como a leitura da Carta aos Brasileiros em 1977, marcando a reação contra a ditadura militar- vive hoje uma esquizofrenia: é uma área pública, mas foi apropriado por indivíduos sem propriedade.
Diariamente, às 7h da manhã, o cenário se repete: lixo, dejetos e dezenas de pessoas amontoadas em suas últimas horas de sono.
Perto das 8h, a prefeitura passa com seu caminhão de água de reúso, despertando-as e retirando restos de alimentos e outras misturas.
Seco o chão, parte do grupo retorna e parte se distribuiu pelas calçadas laterais, como a da frente do prédio histórico da Fecap.
O dia passa numa sequência de mendicância, brigas eventuais e até consumo de drogas. Ao anoitecer, como numa cena de “Ensaio sobre a cegueira”, um contingente enorme se reúne à espera da doação de alimentos para retomar o ciclo: lixo, dejetos e aglomeração madrugada à dentro até que a água da manhã venha para lavar tudo.
O texto parece frio e cruel, mas traduz a rotina de um dos locais mais importantes da história de São Paulo -e também de outros, como a praça da Sé, o largo São Bento e o entorno da BM&F Bovespa.
Estranhamente, não se fala disso.
Talvez por medo da acusação de preconceito, “higienismo” ou outros “ismos” destinados a desqualificar o orador em vez de debater argumentos. Seja como for, uma coisa é fato: ninguém em sã consciência pode achar que a situação de rua é normal ou aceitável.
Fazer vistas grossas a dezenas de pessoas sujeitas a todo tipo de intempérie, doença e violência, isso sim, merece os piores predicados. E o mais desesperador é ver essa realidade evoluindo ao lado do Ministério Público, da Secretaria de Segurança Pública, do Tribunal de Justiça e da sede da Prefeitura Municipal.
A decisão dos moradores de rua de ocuparem o largo é lógica, fundada em dois fatores principais.
Primeiro, estão próximos do cérebro da polícia, o que cria sensação de proteção. Segundo, recebem doação de todo tipo, o que lhes assegura subsistência.
Acontece que ambos os fatores provocam uma inversão do razoável.
A segurança deles afasta os demais transeuntes, que não caminham mais pelo Território Livre.
Os alunos e funcionários da faculdade circulam apenas pela porta dos fundos, com saída para a rua Riachuelo. Os demais pedestres não se arriscam a andar com liberdade. A maioria se afasta o máximo possível dos “lotes” ocupados, temendo algum tipo de hostilidade, às vezes oriunda dos cachorros que também protegem as “propriedades”. Os taxistas que têm ponto no largo reclamam que o movimento caiu até 80%.
[su_quote]Trata-se apenas de desmobilizar massas que, sem conhecerem as alternativas que a rede de atendimento social oferece, tornam seu o que deveria ser de todos[/su_quote]
As doações, por sua vez, apesar de carrearem profundo gesto de amor, enterram os indivíduos na situação em que se encontram, por eliminarem qualquer incentivo à mudança. Os doadores, com toda sua boa vontade, infelizmente alimentam a situação de rua.
O perímetro do largo de São Francisco (incluindo a praça Ouvidor Pacheco e Silva, em frente à faculdade, e a calçada da Fecap) se tornou, portanto, uma hospedaria a céu aberto, com (1) proteção aos seus ocupantes, dada a proximidade da Secretaria de Segurança Pública, (2) limpeza diária com a água da prefeitura e (3) fornecimento de comida pelas instituições de caridade.
Para mudar esse quadro, é preciso consciência da sociedade e ação do Estado. A consciência social passa pela reflexão de que doar dinheiro, roupas ou alimentos na rua não ajudará a transformar as pessoas.
Já a ação estatal deve vir com indução ininterrupta (e não casual ou concentrada em períodos eleitorais) aos moradores de rua para que acessem o sistema de assistência composto por albergues e tendas espalhadas pela região central.
Não se trata de internação compulsória ou outras medidas do gênero. Trata-se apenas de desmobilizar massas que, sem conhecerem as alternativas que a rede de atendimento social oferece, tornam seu o que deveria ser de todos.
Se nada for feito, a apropriação do espaço público tende a aumentar. O território, antes livre, continuará com donos e abandonos.
*Paulo Doron Rehder de Araujo é doutor em direito pela USP e advogado, é professor da FGV-SP
Fonte: Folha de S. Paulo, 26/6/2012
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