A candidatura de Dilma Rousseff à Presidência da República, pela maior competitividade de que se reveste em comparação com outras candidatas – Heloisa Helena (PSOL) em 2006 e Marina Silva (PV) no pleito deste ano -, abre um intenso foro de discussão, a começar pela interrogação que aferventa conversas entre gregos e troianos, governistas e oposicionistas, eleitores racionais e emotivos: será ela mero apêndice do lulismo, podendo ser engolfada pelo petismo, ou terá condições de firmar uma identidade e imprimir marca própria ao governo, caso seja eleita a primeira mandatária do Brasil em toda a sua História? A tentativa de resposta razoável abriga, de pronto, uma avaliação sobre a ministra-chefe da Casa Civil, há quase cinco anos, exercício que leva em conta os quatro eixos de sua identidade: político, técnico, feminino e histórico. Cada um deles permite inferir sobre seu posicionamento no cenário nacional e projetar os rumos do futuro, sabendo-se desde já que postulantes que entram na disputa ao posto máximo da Nação não pela via normal, mas por intervenção cirúrgica, terão grande dificuldade de se acomodar no tabuleiro das conveniências partidárias.
Esse é o primeiro desafio da ministra Dilma. Possui ela tênue identidade política, sendo de pouca valia o fato de ter percorrido, durante algum tempo, o espaço do PDT e se filiado, posteriormente, ao PT. Ser testado nas urnas, entender como eleitores escolhem um candidato, ir ao encontro do povo nas ruas, debater acirradamente com adversários, perder eleições – como aconteceu com Lula algumas vezes – são exercícios que contribuem para lapidar os políticos, aprimorar a cultura e os costumes e, seguramente, conferir desenvoltura aos competidores. É verdade que ser inexperiente em matéria eleitoral não é, hoje, algo tão desastrado como no passado. Até porque escândalos em profusão solapam a imagem da representação política, abrindo espaço para que pessoas sem história se apresentem ao eleitor exibindo feições assépticas. Ocorre que mesmo tais perfis não conseguem escapar da borrada moldura que abriga partidos, correligionários e companheiros. Ninguém consegue escapar das ondas caudalosas que devastam as praias partidárias.
A frágil expressão de Dilma no terreno da experiência política poderá ser compensada por uma boa história nas páginas da gestão governamental. O eixo forte de sua identidade é esse. Trata-se de uma economista reverenciada, com atuação reconhecida na área de minas e energia. Ministra-chefe da Casa Civil, incorporou o papel de executora-mor do governo, sendo até apresentada como mãe do PAC. Esse aspecto, porém, abriga intensa discussão. A saída de um líder carismático para a entrada de um perfil técnico não acarreta uma reversão de expectativas? Por trás da inferência reside a desconfiança de que, em espaço não muito longo, o imenso apoio popular que Lula desfruta poderá ser escasso num eventual ciclo dilmista, mesmo com a figura do mito ao fundo da paisagem. Na ocorrência de distanciamento das massas, seria previsível maior independência da base governista no Congresso e, consequentemente, inversão das cartas do jogo. O presidencialismo de cunho imperial da era Lula entraria em arrefecimento. A identidade técnica de Dilma, por isso mesmo, para manter fluidos os canais com o Congresso e garantir estabilidade à governabilidade, deverá ganhar contrapeso no campo político. Daí a importância de perfis de figurino adequado para liderar uma frente de coordenação política.
Se, por um lado, a identidade técnica canibaliza a identidade política da ministra, por outro, ajuda-a a compor a imagem de autoridade. O estilo gerencial de Dilma Rousseff transmite certa arrogância, jeito de mandona e irritadiça. Ora, tal caracterização permite inferir que ela não aceitaria ser patrulhada por um PT mais radical. E, dessa forma, o estilo durão poderá descambar para a determinação de defender o ideário do lulismo, ao qual expressa sempre muita lealdade. Ademais, é improvável que o País adote políticas que possam reabrir feridas, provocar traumas e alguma contrariedade social. O pragmatismo do governo Lula daria o tom maior, apesar de se saber que acenos radicais sempre enfeitarão o cenário. Servem para lembrar a ligação do governo com movimentos e ideários ortodoxos. O MST não continua fazendo intervenções na paisagem no campo?
E a condição feminina? Como a população enxerga uma mulher no comando da Nação? O gênero feminino consolida-se na esfera institucional, apesar de uma participação modesta das mulheres na política. Desde que a potiguar Alzira Soriano se elegeu como primeira prefeita do País, em 1928, o Brasil passou a valorizar os potenciais femininos. A mulher na política é hoje bem-vista. As representações femininas crescem a cada legislatura. O fato é que a mulher absorveu qualidades enxergadas na condição masculina: a autoridade, a energia, a afirmação do “eu”. Isabelita Perón, quando assumiu a Presidência da Argentina, um país machista, em 1974, teve uma postura desafiante: “Será que os homens realmente acreditam que somente eles podem usar calças?” Em 1976, Margaret Trudeau, acompanhando o marido, o primeiro-ministro do Canadá, em viagem oficial à América Latina, produziu também uma frase que viria a ser bom lema para as mulheres: “Quero ser algo mais que uma rosa na lapela do meu marido.” Dilma Rousseff, para firmar a identidade, não deverá querer ser apenas um apêndice do lulismo. Se optar pela condição de rosa na lapela, será figurante ligeira na Praça dos Três Poderes.
Resta, por último, a história da guerrilheira. Fosse a mineira/gaúcha mais suave e menos propensa a puxões de orelha, esse registro não passaria de mera curiosidade. Perderá votos por causa disso? Poucos. A foto antiga não atrapalhará rumos.
Ao fim e ao cabo, a pergunta: tem ela condições de alçar voo? Sim. Por significar a extensão de um tempo. Que, aliás, poderá voltar-se contra ela se o povo der o veredicto final: “O ciclo esgotou-se.”
(“O Estado de SP”, 28/02/2010)
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