“A lei é a força comum organizada para agir como obstáculo à injustiça; em suma, a lei é a justiça.” (Bastiat)
Historicamente, ninguém mais que o governo tem representado a maior ameaça existente às liberdades individuais. Com isso em mente, pensadores liberais sempre tentaram criar formas de limitar o poder arbitrário dos governos. A descentralização e a independência entre as diferentes esferas de poder sempre foram meios idealizados para este fim. O Bill of Rights criado na Inglaterra e depois nos Estados Unidos tinha como meta justamente a proteção do indivíduo contra o próprio governo. Uma Constituição básica, que limite o poder do governo, parecia fundamental para se preservar a liberdade.
Mas, naturalmente, o fato de existir uma Constituição limitando os poderes do governo não é sinônimo de um limite efetivo destes poderes. A realidade é mais complexa que a teoria, e a lei escrita, por si só, não é garantia de nada. A tendência natural é de cada governante tentar invadir o espaço permitido pela Constituição, minando as liberdades individuais. Governantes mais autoritários farão o possível dentro de seu alcance para expandir o escopo de seu poder. Evitar isto representa a luta primordial de todos os defensores da liberdade. E esse seria o principal papel da Suprema Corte de um país.
Por isso mesmo os governantes mais autoritários sempre encararam a Suprema Corte como um obstáculo a ser dominado. Salvador Allende chegou a declarar que a força política tem o direito de decidir em última instância se as decisões do judiciário se enquadram ou não nos objetivos e necessidades históricas de transformação da sociedade. Para ele, cabia ao poder Executivo o direito de decidir seguir ou não os julgamentos do judiciário. Em outras palavras, o presidente deveria ser um ditador todo-poderoso, governando com uma carta branca nas mãos e ignorando a Constituição. O oposto daquilo idealizado por Aristóteles, que seria justamente um governo de leis, não de homens.
Possivelmente o presidente americano mais autoritário de todos, Franklin Delano Roosevelt também se incomodou com os limites impostos pela lei ao seu New Deal. O programa mais ambicioso de todos, National Industrial Recovery Act (NIRA), simplesmente ignorava a Constituição e partia para um controle econômico e social jamais visto antes no país. As mais básicas liberdades foram jogadas no lixo. Inspirados no planejamento centralizado da União Soviética e do fascismo, os arquitetos do New Deal transformariam os cidadãos americanos em verdadeiros súditos do governo. Um dos obstáculos que Roosevelt teria que enfrentar era justamente a Suprema Corte.
Entre os juízes mais fiéis aos princípios da Constituição herdada dos “pais fundadores” estava George Sutherland. Ele acreditava que a função mais importante da lei era proteger a liberdade individual através da restrição do poder governamental. À medida que casos legais iam chegando à Suprema Corte, Sutherland e alguns outros juízes jogavam um verdadeiro balde de água fria nas intenções autoritárias de Roosevelt. O caráter inconstitucional das medidas do New Deal ficava cada vez mais explícito. A Corte deixava transparecer que não era sua função considerar vantagens ou desvantagens econômicas do sistema centralizado almejado por Roosevelt, bastando afirmar que a Constituição Federal não reconhecia tais direitos. Em maio de 1935, o NIRA foi fatalmente atingido, para o desespero dos governantes.
Mas FDR não iria desistir facilmente. Em um dos ataques mais escancarados aos valores de liberdade dos americanos, o presidente tentou uma reforma no judiciário, claramente com o objetivo de desobstruir as amarras legais que impediam o avanço de seu poder. Roosevelt tentou aumentar o número de juízes durante sua gestão, diluindo assim aqueles que ainda resistiam à pressão de sucumbir ao novo mundo “progressista”, que não encontrava limites constitucionais às suas metas. Aparelhando a Suprema Corte com gente de sua confiança, Roosevelt iria derrubar as últimas barreiras a seu projeto de governo centralizador. Felizmente para os americanos, tanto políticos Republicanos como Democratas reagiram de forma enérgica, impedindo este último passo rumo ao totalitarismo.
Não obstante, muito estrago já tinha sido causado, e a Suprema Corte não foi capaz de impedir inúmeras mudanças visivelmente inconstitucionais. Roosevelt tinha simpatizantes “progressistas” no judiciário, e contava com enorme pressão popular também. Quando os juízes trocam o objetivo conceito de Justiça pelo vago termo “justiça social”, o céu é o limite para a arbitrariedade das decisões. Os atos mais autoritários passam a ser justificados com base neste argumento utilitarista, e em nome de uma pseudo-liberdade o governo acaba destruindo a verdadeira liberdade.
Fica evidente que contar apenas com a coragem, determinação e integridade de poucos juízes não garante a manutenção das liberdades individuais. Um poder judiciário independente com a missão de representar o guardião da lei parece uma idéia extremamente importante na luta pela preservação da liberdade. Mas sempre há o risco deste poder ser capturado pelo governo. Por isso que, em última instância, o guardião da lei tem que ser o próprio indivíduo. O preço da liberdade é a eterna vigilância, e um povo de cordeiros terá sempre um governo de lobos. E nada pior que um lobo com o respaldo da própria lei. Afinal, um assaltante não tenta argumentar que está te roubando para seu próprio bem, sem falar que ele pelo menos te deixa em paz após a pilhagem. Já um governo opressor e ilegítimo, mas agindo na legalidade que ele mesmo criou, não encontra limites em sua volúpia por poder e recursos, e ainda transforma todos em escravos alegando estar lutando pela nossa liberdade.
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