Por volta do ano 60 antes de Cristo, Júlio César era um nome em ascensão. Já ocupava postos de destaque na República romana e todos – inclusive o próprio – acreditavam que, com o seu prestígio e a sua popularidade, seria tentado a sagrar-se imperador. Na verdade, sua ambição era ainda maior. Quando andava pelas ruas e o povo o chamava de rei, ele invariavelmente respondia: “Não sou rei, sou César”.
Mas o que importa, aqui, é o conceito de vida pública que ele cultivava. Quando Pompeia, sua esposa, se envolveu num escândalo, Júlio César imediatamente se divorciou dela. Quando perguntado sobre o porquê de tão drástica atitude, uma vez não havia provas concretas contra ela, ele teria respondido: “A esposa de César tem de estar acima de suspeitas”. Nasceu aí o popular conceito sobre “a mulher de César”. Ou seja, não lhe basta ser honesta; tem, também, de parecer que o é.
Dois milênios passados, aqui, nos nossos trópicos, vem à tona o caso do ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República, Antônio Palocci. Será que continua valendo o mesmo princípio?
Sim e não.
Há que levar em conta que, na nossa invulgar República, não existe uma oposição competente. E, para agravar o quadro, o partido que está no poder não costuma dar prioridade ao problema da corrupção. O que vale é a identidade ideológica. A justificação se dá pela fé.
Um argumento a favor de Palocci é o de que ele, no início do governo passado, como titular do Ministério da Fazenda, demonstrou ser o único dique de sensatez a barrar a avalanche de desvarios de seus correligionários. Há quem diga que foi ele o grande arquiteto do presente “milagre econômico”.
Existe alguma verdade nisso. Palocci teria dissuadido o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva de pôr em prática as tresloucadas concepções econômicas do seu partido. Foi graças à sua persistência – ao manter intactas as políticas adotadas pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – que os bons resultados na economia puderam ocorrer. Como o governo de Fernando Henrique acabara com a inflação e deixara as contas em ordem, o crescimento do produto interno bruto (PIB) seria de esperar. Se esse quadro de estabilidade e bonança vai permanecer, já é outra história…
Agora, com relação ao presente escândalo envolvendo o nome do ministro, as reações de Palocci têm servido apenas para reforçar as suspeitas que pairam sobre ele. “Se tem cara de boi, berro de boi e chifre de boi, então é boi!” – essa é a conclusão a que chega a opinião pública.
“Ou, então, é o capeta!” Tratar-se-ia, no caso, de um demônio sonso. Bem ao estilo da “companheirada”.
Palocci, no presente governo, tem sido a figura principal – na falta de uma principal figura.
Quando a imprensa levantou dúvidas sobre a recente prosperidade do ministro, as suas respostam levantaram ainda mais dúvidas. Os imóveis não pertenceriam a ele, mas, sim, a uma empresa de consultoria. E a quem pertenceria essa empresa? A ele. Quem seriam os profissionais que trabalham na dita empresa? Somente ele. E quanto aos seus clientes, quem seriam? Ele não pode dizer, porque a informação é confidencial…
É como na fábula. Cadê o queijo? O rato comeu. Cadê o rato? O gato engoliu. Cadê o gato? Foi para o mato. Cadê o mato? O fogo queimou… E desse jeito a história nunca termina.
É um caso raro de alguém que chega à desgraça por esforço próprio. Geralmente isso acontece com a ajuda dos inimigos. Mas quem é inimigo de Palocci?
A oposição não é. No ninho dos tucanos, José Serra e Aécio Neves – os seus mais conhecidos representantes – trataram logo de defender o ministro. Alegaram, para tanto, o benefício da dúvida.
Bem que no interior de São Paulo – à época em que a ave foi adotada como símbolo da social-democracia – os mais antigos já alertavam: “Isso não vai dar certo. O tucano é conhecido como um pássaro que tem bico longo e voo curto”.
Quem, então, está querendo derrubar Palocci? Pelo jeito, são os seus pretensos amigos. E – como já foi dito – ele próprio.
Um dos principais mandarins do Palácio do Planalto – depois de apresentar algumas desculpas nada convincentes – aproveitou o momento para dar ainda mais um impulso à polêmica: decretou que a questão estava “encerrada”! Podia estar para ele. Para a opinião pública, estava apenas começando.
É típica dessa gente, que se acredita “de esquerda”, a atitude de pretender arbitrar a natureza das coisas. E também a de reivindicar indulgência plenária para todos os pecados que eles mesmos cometem. Entendem que, como a sua causa é nobre, tudo o que fizerem se justifica.
Os liberais – que eles reputam ser da “direita” -, ao menos, são mais humildes. Por aceitarem a natureza humana como ela é, renunciam à ideia de que é possível reformá-la. Contentam-se em cultivar a ética e a integridade como virtudes pessoais. E, no mais, que cada um cuide de si.
Os esquerdistas não são assim. Por acreditarem estar do lado do povo – uma entidade que se torna a cada dia mais abstrata -, eles entendem que jamais fazem nada de errado.
As atrocidades cometidas pelos regimes da direita são indesculpáveis, porque inerentes ao sistema iníquo que ela defende.
Já as barbaridades verificadas nos regimes ditos de esquerda são meros “acidentes de percurso”. E plenamente justificáveis, porque, afinal, o que eles buscam é o bem da humanidade…
Só que o “povo” não pensa assim. O “povo” entende que não basta aos homens públicos serem honestos. Eles precisam também parecer honestos. E quando surgem dúvidas, demonstrar que o são de verdade.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 20/05/2011
O tema é recorrente, então novamente vamos lá: já que Francenildo teve de explicar uns “trocados”, algumas dezenas de milhares de reais (que por sinal tiveram comprovação de origem), porque Palocci, nosso premiê, não deveria ser convocado a depor? Iremos corroborar o raciocínio de Dna Marta Suplício, segundo a qual o ministro merece tratamento especial, pois não é uma pessoa comum. Se formos por este pensamento, o fato de não ser comum por si só denota necessidade de explicação plausível.