No esforço de conter a pandemia do coronavírus, dados de celulares têm sido rastreados em vários países, inclusive no Brasil, para checar se medidas de isolamento dos que podem ficar em casa estão sendo cumpridas pela maioria da população. A crise sanitária acabou abrindo oportunidades às empresas detentoras dessas tecnologias e chamou a atenção de gigantes como Google e Apple para o uso dos dados dos sistemas operacionais dos seus celulares. As empresas de tecnologia já vislumbram um mercado mais amplo para o uso desses dados, incluindo também interesses comerciais e privados.
Em países como Coreia do Sul e Cingapura, a tecnologia tem colaborado para conter o avanço do vírus, apontando escapadas da quarentena. No Brasil, o monitoramento ainda precisa demonstrar a que veio, mas a pandemia foi responsável por aproximar a tecnologia dos governos.
Há três formas de rastrear uma pessoa por meio do celular. A primeira é captando sinais emitidos pelo aparelho à antena de telefonia mais próxima. A variação na demanda por uma antena pode dizer, por exemplo, se mais ou menos gente circula no entorno dela. É possível também monitorar os sinais de sensores como o GPS, usados por aplicativos instalados nos celulares. A vantagem: conhecer o trajeto percorrido pelo aparelho. Antes da crise sanitária, essa tecnologia era popular entre varejistas dispostos a mandar ofertas a quem estivesse passando perto de suas lojas.
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Uma terceira forma usa a tecnologia Bluetooth, que conecta aparelhos a menos de dois metros de distância, para cruzar dados. A Coreia do Sul, um exemplo de sucesso no controle da pandemia, adotou o Bluetooth para alertar a população exposta a possíveis infectados. Desde março, Google e Apple estudam acoplar a tecnologia para fins sanitários em celulares com seus sistemas operacionais.
Uso público e comercial
No Brasil, governos estaduais e prefeituras usam dados de antenas de celular e dos aplicativos no combate ao vírus. Um consórcio das teles (Vivo, TIM, Claro e Oi) tem mapeado a adesão ao isolamento social em estados como São Paulo e Rio Grande do Sul. Na última segunda-feira, uma medida provisória (MP) autorizou o IBGE a usar dados telefônicos de clientes das operadoras do país para suas pesquisas e, assim, contornar problemas logísticos causados pela pandemia. Na sexta-feira, porém, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a MP por liminar.
O monitoramento por aplicativos tem sido adotado também em pelo menos 14 estados e prefeituras de capitais como Recife, Aracaju e Teresina. Por trás do sistema está a start-up pernambucana InLoco, que desde 2016 oferece serviço de monitoramento de aplicativos de grandes varejistas, como Magazine Luiza, Grupo Boticário e OLX para disparos de ofertas a clientes ao redor das lojas físicas.
Os dados são repassados de forma anônima e gratuita aos governos, diz o fundador da InLoco, André Ferraz, mas ele espera um crescimento de 50% das receitas da empresa este ano com clientes privados. Isso por causa de uma demanda também criada pela pandemia: a de empresas em apuros financeiros.
— Somos procurados por empresas que querem medir o impacto do isolamento social sobre a economia das cidades — diz o líder da InLoco, fundada em junho de 2019, que recebeu aporte de US$ 20 milhões do grupo de investidores liderado pelo Unbox Capital, dos donos do Magazine Luiza.
A empresa suíça Kido Dynamics, cuja tecnologia cruza os dados de teles com mapas para descobrir os trajetos mais populares numa cidade, chegou ao Brasil no ano passado. Até aqui, a empresa vinha atendendo varejistas e empresas de outdoor — todos em busca de informações sobre os pontos comerciais com maior movimento. Outro alvo da Kido são as empresas de transporte urbano ou aplicativos de mobilidade em busca de adequar o tamanho da frota a um cenário de menor fluxo nas cidades por causa das medidas de isolamento. Em 2020, as receitas da empresa podem triplicar, diz Luiz Eduardo Viotti, diretor geral da companhia no Brasil:
— Antes da pandemia, o monitoramento interessava ao varejo. Agora, a todos os setores da economia.
Atuação em parceria
A paulistana Hands, que também monitora dados de aplicativos para checar o fluxo das pessoas em grandes cidades, espera atender negócios de rua afetados pelo tombo nas vendas causado pelas regras de isolamento social.
— O varejo de pequeno porte, como bares e restaurantes, vai precisar dessas tecnologias para sair da crise — diz João Teixeira de Carvalho, fundador da Hands, que espera dobrar o faturamento este ano e chegar a 600 mil negócios atendidos.
Nos últimos meses, a Hands vem fechando parcerias com fornecedores de tecnologias a pequenas empresas, como a operadora Claro e a empresa de maquininhas Cielo. A ideia é oferecer a tecnologia para melhorar a publicidade de negócios de pequeno porte junto a seus vizinhos.
O avanço das tecnologias de rastreamento esbarra no receio que o uso de dados sempre levanta em relação à privacidade. As empresas dizem que, nas três tecnologias disponíveis no mercado hoje, os dados de movimentação são filtrados para tirar a identidade dos usuários por trás deles. No jargão do setor, é a “anonimização” dos dados.
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Na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro barrou iniciativa do Ministério da Ciência e Tecnologia para rastrear sinais de antenas de celular nos moldes do que faz o governo paulista. Nos EUA, congressistas levantaram dúvidas sobre como Google e Apple pretendem “anonimizar” os dados caso as iniciativas nessa área avancem.
Para o advogado Bruno Bioni, fundador do Data Privacy Brasil, ONG dedicada a estudos sobre privacidade, falta no país uma legislação para amparar o uso de dados por empresas e governos. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), aprovada no Congresso em 2018, e que deveria entrar em vigor em agosto deste ano, foi postergada para 2021, em razão da dificuldade para preparação das empresas diante da pandemia.
Thiago Rondon, do Instituto de Tecnologia e Equidade, que se dedica ao debate sobre o futuro da tecnologia, avalia que falta no Brasil uma autoridade central para o uso de dados pessoais no combate à pandemia.
Políticas públicas
De outro lado, a falta de informações pode se tornar entrave para políticas públicas. Na última semana, nove ex-presidentes do IBGE assinaram um abaixo-assinado a favor da MP que libera dados telefônicos ao IBGE com o argumento de que o país corre o risco de viver um “apagão estatístico”. Os dados são necessários para elaborar a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), com dados de emprego e renda, e um levantamento sobre a Covid-19. A coleta de dados na casa das pessoas foi suspensa em razão da pandemia, e o instituto é obrigado por lei a manter o sigilo estatístico.
Fonte: “O Globo”