O advogado Modesto Carvalhosa acredita que o Decreto 8.420 – que regulamenta a Lei Anticorrupção – reduziu muito a importância da medida como instrumento de combate a práticas ilícitas cometidas por empresas. Promulgada em agosto de 2013, a Lei 12.846 foi regulamentada em março deste ano. “A regulamentação anulou a lei, tirou toda a sua eficácia na punição das pessoas jurídicas”, critica o advogado.
Autor de “Considerações sobre a Lei Anticorrupção de pessoas jurídicas” (Revista dos Tribunais, 2014), Carvalhosa explica que os mecanismos de compliance e os acordos de leniência se tornaram meios de isentar as companhias de responsabilidade pela prática da corrupção. “O decreto torna tudo absolutamente fácil para as empresas continuarem operando como fazem hoje, para continuar tudo sem nenhuma punição. É para manter tudo como está”, destaca ele. Leia a entrevista:
Instituto Millenium: Qual é a sua opinião sobre a Lei Anticorrupção? Ela é um instrumento eficaz de apoio ao combate à corrupção?
Modesto Carvalhosa: A Lei Anticorrupção é a internalização da luta mundial contra a corrupção promovida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Organização dos Estados Americanos (OEA). É um instrumento interno dessa luta mundial contra a corrupção, que cria mecanismos de extraterritorialidade na aplicação das medidas internacionais e mundiais contra a prática. A lei é de grande necessidade e utilidade.
Instituto Millenium: No livro “Considerações sobre a Lei Anticorrupção de pessoas jurídicas” (Revista dos Tribunais, 2014), o senhor afirma que a lei é produto da “malfadada cultura de legislar para dissimular, ‘para inglês ver’”. Por quê?
Carvalhosa: O governo atual foi obrigado a promulgar a lei. Foi forçado por dois fatores. Primeiro, pela pressão da OCDE e do departamento de Justiça americano no sentido de fazer o país adotar e internalizar os tratados. O segundo fator se deve à manifestação de junho de 2013, quando a população exigiu medidas de combate à corrupção. De modo, que a lei foi imposta ao atual governo.
Instituto Millenium: A lei contempla a realidade brasileira?
Carvalhosa: É uma lei excelente, que veio na hora certa. Mas o governo tomou medidas para impedir a sua aplicação. Em sua diplomação, no dia 18 de dezembro de 2014, e depois na primeira reunião com a equipe ministerial, a presidente declarou que as pessoas que cometem corrupção devem ser punidas, e não as empresas. Essas poderiam ser poupadas, sendo que a lei, assim como todos os tratados internacionais, se refere à punição das companhias pela constatação óbvia e mundial de que são as empresas, multinacionais e nacionais, as operadoras da corrupção. Elas subornam os governos. O governo ainda fez o Decreto 8.420 [de 18 de março de 2015] regulamentando a lei. Mas a neutralizou, na verdade. O decreto foi feito porque a OCDE pressionou o governo.
Instituto Millenium: Mas qual foi o problema? A lei não foi bem regulamentada?
Carvalhosa: O decreto dá uma anistia ampla, geral e irrestrita à pessoa jurídica. É uma forma de não aplicar a lei. A regulamentação anulou a lei, tirou toda a sua eficácia na punição das pessoas jurídicas. E o objetivo internacional da luta contra a corrupção é punir as pessoas jurídicas.
Instituto Millenium: Nossas instituições estão preparadas para combater a corrupção praticada por empresas?
Carvalhosa: A Polícia Federal, o Ministério Público Federal, a Justiça Federal, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal têm combatido a corrupção de uma maneira corajosa e persistente. A lei não está sendo aplicada, pois todas as medidas tomadas [nos escândalos recentes de corrupção] se voltam para as pessoas físicas dos diretores das companhias. Até hoje, a lei anticorrupção nunca foi aplicada no Brasil. Contra as pessoas jurídicas nada foi feito no país até agora.
Instituto Millenium: Os mecanismos de compliance citados na lei realmente podem reduzir os riscos de uma empresa se envolver em casos de corrupção?
Carvalhosa: O programa de compliance é igual ao americano e não tem nada a ver com a realidade brasileira. O governo não tomou providência para terminar com o esquema da estrutura da corrupção no Brasil. O compliance é uma forma de isentar as empresas, assim como o acordo de leniência. É uma encenação. Na realidade, todas as empresas envolvidas na Operação Lava-Jato, por exemplo, subscreveram o código federal de bom comportamento empresarial feito pela Corregedoria Geral da União (CGU) há alguns anos e continuaram praticando corrupção.
Instituto Millenium: Outro tema muito debatido atualmente e também tratado na regulamentação da lei se refere ao acordo de leniência. Em linhas gerais, existe o risco da banalização dos acordos de leniência? Eles podem ser prejudiciais ao interesse público?
Carvalhosa: Acordo de leniência serve para permitir que uma única companhia [envolvida em esquema de corrupção] possa denunciar as demais. Mas pelas portarias nº 909 e nº 910 [ambas da Controladoria Geral da União, de 7 de abril de 2015] todo mundo pode fazer acordo de leniência, tornando-o uma forma de a empresa não ser processada, de pagar uma multinha e resolver o problema. Ou seja, o acordo de leniência virou uma forma de anistiar as empresas e não de aprofundar as investigações e as penalidades correspondentes às provas estabelecidas.
Instituto Millenium: O acordo de leniência tinha que ser feito com o Ministério Público Federal (MPF) e não com a CGU?
Carvalhosa: Tinha que ser feito com o MPF. Poderia até ser com a CGU, caso o órgão fosse um ministério do Estado, completamente neutro, e não do governo. O acordo de leniência virou um escape para anistiar as empresas, em vez de ser uma coisa para aumentar ainda mais as suas responsabilidades. Inverteram completamente a função do acordo de leniência. A lei é clara. O artigo 16, parágrafo 1º, inciso I diz claramente: “o acordo de leniência deve ser feito com a pessoa jurídica que seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito”. Ou seja, só pode ser feito com a primeira empresa. Então, serve para livrar as empesas das penalidades e permitir que elas continuem operando com o governo. É para manter tudo como está.
Instituto Millenium: A lei prevê que a empresa pagará multa de 0,1% a 20% do faturamento bruto de seu último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo em caso de corrupção. Acha que a punição vai ter força para reduzir a corrupção?
Carvalhosa: Não. No Decreto 8.420, a pena é reduzida para 5%. O artigo 17 do decreto faz uma série de ponderações para baixar para 5% a multa e torná-la ilíquida, fazendo com que as empresas possam ir ao Judiciário suspender sua cobrança e depois anulá-las. Usam um cálculo de progressão impossível de ser aplicado, sem consistência aritmética ou matemática. Na prática, por meio do decreto, revogaram a lei. O decreto torna tudo absolutamente fácil para as empresas continuarem operando como fazem hoje, para continuar tudo sem nenhuma punição. É tudo uma encenação.
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