Por que as instituições se fortaleceram no Brasil?
“Os governantes tema aversão a prestar contas” como nos lembra Soll em seu magistral “The reckoning: financial accountability and the rise and fall of nations”. Na Inglaterra do século XVII, Charles I mandou cortar as orelhas de William Prynne, que chefiava uma comissão de contas criada pelo Parlamento para investigar a gestão das receitas do Estado. Desconfio que nossos governantes tenham tido ímpeto semelhantes em relação a magistrados como Joaquim Barbosa e Sérgio Moro. Mas o corte de orelhas obviamente não se consumou. Nas democracias contemporâneas, a violência física não consta do repertório de ações dos governantes, e, nas mais consolidadas, a interferência nas instituições de controle é mínima. No Brasil a recém-adquirida robustez das instituições de controle latu senso (Judiciário, Ministério Público, TCU) tem chamado a atenção. O que causou seu fortalecimento e de onde vem sua independência?
Há dois argumentos rivais para dar conta desse fortalecimento. O primeiro sustenta que o fator determinante é a retidão de propósitos dos governantes. Assim, as instituições deveriam seu fortalecimento ao reformador que “não rouba nem deixa roubar”. Embora seja normativamente atraente – afinal tem forte apelo sobre nossa consciência moral – as pesquisas mais instigantes na ciência política tem mostrado que as instituições fortes de controle não são produto da ação de governantes, partidos ou movimentos. A recíproca, no entanto, é verdadeira: governantes corruptos tem sido em geral bem sucedidos no objetivo de subjugar as instituições de controle. Muitos partidos, movimentos e indivíduos chegaram ao poder em cruzadas anticorrupção e moralizantes. Caso tornem-se dominantes, inicia-se a degeneração institucional. Há, assim, algo mais que voluntarismo em jogo.
O argumento rival defende que não são cruzadas morais que fortalecem o controle da corrupção e previnem o abuso, mas o desenho institucional voltado para maximizar os incentivos para o controle. Denominemos esse argumento de argumento neomadisoniano em homenagem ao pai fundador da república americana, James Madison. Em “O Federalista nº 51” afirmou “que se o homens fossem anjos, os controles não seriam necessários”. O ponto de partida do madisonianismo é que o poder corrompe. A defesa contra o abuso de poder e a corrupção não é a conversão – a uma ideologia ou princípio moral transcendente – mas um desenho institucional que leve a contraposição de interesses.
Dessa forma, os atores institucionais teriam incentivos para se controlar mutuamente. A transparência seria produzida pela competição política e o melhor remédio contra a corrupção seria então uma oposição forte. Só ela teria interesses em desvelar desmandos. A autocontenção (moral) é insuficiente porque o “moral hazard” (risco moral) é alto: governo algum tem interesse em expor suas próprias mazelas, pelo contrário. Nas novas democracias – o caso brasileiro é exemplar – o risco permanente é o conluio entre parceiros em uma coalizão dominante ou o uso da maioria para inibir as instituições de controle.
O exemplo das instituições de controle dos países da comunidade britânica das nações é ilustrativo. A presidência dos “Public Accounts Committee” é delegada ao líder da oposição que nomeia o titular do National Audit Office – que é o equivalente ao TCU no Brasil. A intuição por trás dessa regra é madisoniana: a maioria parlamentar que dá sustentação ao governo não está interessada em se autocontrolar. Só a oposição alimenta esse interesse. Isto explica porque, por exemplo, as CPIs no Brasil nunca tiveram efetividade, porque controladas pelo governo e sua maioria. Os episódios raros em que surtiram efeito foram apenas porque puderam dar vazão a conflitos no seio de famílias ou “fogo amigo” entre desafetos. Só tem efetividade no país as instituições que fogem a essa lógica por serem antimajoritárias, como o Judiciário e o Ministério Público (urge que o TCU seja reformatado e se converta em instituição judicial!). Mas poderíamos acrescentar também a mídia independente do governo. Nas novas democracias, estas instituições são a última linha de defesa da “res publica”.
Mas o que impede o governo de “cortar as asas” das instituições de controle”? A interferência aberta nessas instituições tem custos que em alguns contextos democráticos podem ser proibitivos: os eleitores punem nas urnas governos que ataquem tais instituições. No limite, a interferência ocorre de forma indireta quando a falta de alternância política se traduz na composição governista dos colegiados dessas instituições. Mas o ataque direto tem um custo reputacional: ele é tanto maior quanto mais independente for a mídia e mais forte a oposição.
Os limites à interferência nas instituições são dados pela opinião pública, sobretudo nas democracias maduras. Há um equilíbrio quando os custos de tolerar a oposição e os controles tornam-se maiores que os de reprimi-los. Esse argumento parece ser bem compreendido por protagonistas do “jogo do controle” no Brasil. O juiz federal Sérgio Moro, em texto de 2004 sobre a Operação Mani Pulite, que levou centenas de políticos e empresários para a cadeia, concluiu que “a lição mais importante de todo o episódio seja a de que a ação judicial contra a corrupção só se mostra eficaz com o apoio da democracia… Enquanto ela contar com o apoio da opinião pública, tem condições de avançar e apresentar bons resultados”. Ao deflagrar a Operação Lava-Jato certamente anteviu o massivo apoio que receberia da opinião pública.
No Brasil, as instituições fortaleceram-se e isso foi produto da competição política. O contrafactual é dado por países onde forças políticas tornaram-se hegemônicas e o controle democrático sobre os governos definhou. Estudos comparativos rigorosos na América Latina e na Europa do Leste corroboram amplamente este argumento. O neomadisonianismo não é vacina definitiva contra o corte de orelhas, mas é o começo. Sim, o Brasil vai mal, mas as instituições antimajoritárias funcionam cada vez melhor!
(*) Marcus André Melo é professor da UFPE, foi professor visitante da Yale University e do MIT
Fonte: “Valor econômico”, 9 de outubro de 2015.
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