O mundo assistiu à queda do Muro de Berlim há 20 anos. As revoluções socialistas e marxistas já fazem parte do século passado e a bipolaridade entre os EUA e a URSS já não domina mais as relações políticas mundiais. Mas por que a América Latina insiste em ressuscitar chefes de estado populistas empenhados em aplicar as mesmas políticas fracassadas do passado? Por que continuamos presos a uma visão marxista da sociedade e a uma mentalidade da Guerra Fria que separa o Norte do Sul, projetando uma luta de classes entre os ricos e os pobres para o terreno étnico e social? Enfim, o que está ocorrendo com a nossa democracia, cada vez mais sufocada por regimes que atropelam as instituições republicanas e amordaçam as liberdades individuais?
Aprendi desde cedo que a precondição necessária de todo governo democrático é a proteção às liberdades civis. No entanto, mesmo para uma definição mínima de democracia, não bastam nem a atribuição a um elevado número de cidadãos do direito de participar da tomada de decisões coletivas, nem a existência de procedimento eleitoral para caracterizar um sistema democrático. É indispensável uma terceira condição: é preciso que aqueles que são chamados a decidir sejam colocados diante de alternativas reais de liberdade de expressão e postos em condição de poder exigir o respeito ao cumprimento das leis e aos princípios democráticos.
E o populismo ignora justamente isso, pregando uma democracia fajuta que não leva em conta os direitos individuais. A América Latina é um exemplo inequívoco de que o populismo econômico e político resistem mesmo diante dos mais contundentes fracassos. Imprensa acuada, Judiciário cooptado, opositores exilados, economia estatizada, Legislativo domesticado, educação ideologizante e liberdade amordaçada são as marcas contundentes de uma América Latina cercada de governantes interessados no “socialismo do século XXI”. E o que mais impressiona são os formadores de opinião prontos a lhes dar credibilidade e simpatizantes ansiosos por conceder vida nova a ideias que pareciam extintas.
Na América Latina o que está em jogo é o futuro da democracia. E em que consiste o bom governo democrático se não, acima de tudo, no rigoroso respeito às regras do jogo? Lamentavelmente, os princípios democráticos têm sido manipulados para subverter a própria democracia. Será difícil enxergar que os desejos da sociedade precisam predominar em todas as questões públicas, mas nunca transgredindo os direitos básicos dos indivíduos?
Aliás, por que ninguém questiona que a entrada da Venezuela no Mercosul significa ratificar os projetos autoritários do coronel Chávez, além simbolizar uma ameaça à estabilidade da América Latina com o financiamento e o apoio a grupos radicais de países vizinhos, a formação de uma milícia civil e a aliança com a ditadura cubana de Fidel Castro?
Diante dessas ponderações, indago: por que é tão difícil compreender que o objetivo de todas as modernas instituições políticas e jurídicas é o de salvaguardar a liberdade do indivíduo contra intromissões da parte do governo? É tão difícil perceber que tratar as companhias estrangeiras como inimigas, desconfiar dos empresários nacionais e não se preocupar em diversificar as exportações têm corroborado para que a população latino-americana continue ainda mais miserável? E o nosso Itamaraty, continuará leniente com as atrocidades morais e constitucionais perpetrados pelo caudilhismo doentio?
Mas uma evidência me deixa muito otimista: por causa da inexorável passagem do tempo, a minha geração não está mais interessada em trocar os bons costumes da democracia por regimes que agridem as liberdades constitucionais. Represento a geração pós-muro de Berlim, pós-Guerra Fria, pós-ditadura militar. Não almejamos burlar as regras do jogo, muito menos pensar em fazer revoluções estudantis com anarquia e greves desnecessárias. Não desejamos mudar o mundo com rupturas e transgressões morais e diplomáticas, pois se hoje temos liberdade para tratar de qualquer assunto em uma imprensa livre, é porque nascemos sob a proteção daqueles que justamente lutaram pela liberdade. Por isso consideramos que o dogmatismo da atual esquerda latino-americana não passa de uma autocontradição e confusa mistura de várias doutrinas incompatíveis entre si. É o que há de pior no caudilhismo bolivariano, uma adulterada compilação de suposições tiradas de sofismas e falsos conceitos há muito ultrapassados.
Será possível que os jovens idealistas e adultos engajados devam renunciar-se à sua liberdade e voluntariamente entregar-se à vontade de um governo onipotente? Que devam procurar a alegria num sistema no qual sua única tarefa será a de servir como uma peça a mais numa grande máquina projetada e manipulada por um planejador todo-poderoso? Não sei se estamos anestesiados, ou se nada nos interessa. O fato é que há um novo fenômeno político na América Latina pronto para pisotear as liberdades individuais e a democracia representativa.
Fonte: “O Tempo”, 30/11/2009.
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