Historicamente, a pena no direito brasileiro caracteriza-se por ter herdado, como espinha dorsal do sistema punitivo, o espírito inquisitorial, vale dizer, a acusação do Estado é prova da culpabilidade, cabendo ao acusado provar o contrário. Esse autoritarismo latente no sistema penal brasileiro, agravado pelas práticas nos dois períodos ditatoriais (1937-1945 e 1964-1988), trouxe como consequência a reação oposta, que se expressa na sua forma mais radical no abolicionismo penal, isto é, não se deve aplicar penas privativas da liberdade, ou em sua forma mitigada no garantismo penal.
Instrumento da punição, a pena vem sendo tida por correntes da criminologia contemporânea como um mal sem si mesma. Na cultura cívica brasileira, que se caracteriza como sendo uma cultura basicamente da não punição, os desejados efeitos da pena – ressocialização do apenado, mudança no seu comportamento moral e segurança pública – tornam-se dentro desse quadro cultural irrealizáveis. Isto porque o sistema punitivo brasileiro se materializa através de dois extremos opostos: pela violência brutal, com o desrespeito aos mais elementares direitos da pessoa humana, ou, então, pela não punição pura e simples dos atos criminosos. Em ambos os casos, encontramo-nos diante da falência do sistema punitivo, de sua possível função social e a consagração da anomia do sistema e da impunidade.
O debate público sobre a punição e a pena tem sido ignorado, provocando o surgimento de um sistema penal injusto, porque não pune ou, quando pune, pune o mais fraco, e, assim, torna-se ineficiente porque não contribui para a paz social.
Deste modo, não se analisa de forma pública e democrática as razões da punição na sociedade democrática. O sistema prisional brasileiro mais parece um queijo suíço, cheio de leis e prisões que deixam passar por seus buracos a violação permanente da ordem social. As leis penais e o sistema penal têm demonstrado sobejamente a sua inapetência em garantir o mínimo de segurança para a sociedade e a possível recuperação do apenado. Indubitavelmente, a causa desse sistema falido, que transborda a sua incompetência para o resto de sistema punitivo, ensejando a corrupção e a leniência com o crime e com criminoso, é a falta de um debate público, transparente e democrático que procure responder a uma simples pergunta: “por que punir”? Quais são os fundamentos éticos da punição?
Nesse contexto, torna-se necessária uma reflexão que procure a fundamentação ética e, portanto, filosófica da punição. Essa justificativa ética destina-se a formular argumentos razoáveis para convicções que temos como indivíduos e cidadãos, fruto de predisposições instintivas, mas que nós, agentes morais, necessitamos justificar em nossa consciência.
A dificuldade primeira em se situar diante do avanço da criminalidade encontra-se, em primeiro lugar, na repulsa encontrada na cultura cívica a respeito da punição. O mal acaba sendo a punição, e não o crime, e isso porque o sistema punitivo, por falta precisamente dessa fundamentação ética, tornou-se um sistema reprodutor do crime que deveria punir. Uma constatação empírica, que se revela sintomática, a propósito, reside na ausência na literatura filosófica e jurídica brasileira de textos que tratem da fundamentação ético-filosófica da punição.
Para suprir essa lacuna, que se reflete na legislação e na aplicação da pena, encontramo-nos em face de um desafio. Como justificar a punição, quando se reconhece na sociedade um ambiente criminógeno? A resposta provavelmente não se encontra nas razões psicológicas, sociológicas ou religiosas que podem levar ao crime. Essas razões são relevantes, e uma ética da punição deverá considerá-las como o patamar empírico sobre o qual será construída a fundamentação ética. Mas essas razões não são suficientes, por si mesmas, para explicar e justificar um sistema penal eficiente. O desafio com que nos encontramos no Brasil contemporâneo reside em refletirmos sobre essa realidade em função de princípios morais que servem de alicerce para a própria sociedade.
Por que punir? Essa pergunta, implícita no debate sobre o crime permanece atualíssima e, para que possamos, pelo menos, situá-la racionalmente no âmbito do espaço público, é necessário recuperarmos para a cultura cívica nacional algumas indagações sobre a natureza da pessoa, da sociedade e do crime. A pessoa como agente moral – ser dotado de razão e autonomia – constrói a sociedade, o estado e estabelece leis comuns com vistas a preservar, precisamente, a sua dimensão moral maior. A condição de sobrevivência da sociedade reside, assim, no reconhecimento, antes da própria explicitação do sistema de normas jurídicas, de um conjunto de valores fruto da consciência moral de cada indivíduo. Essa é a ideia que se encontra nas teorias contratualistas da justificação da sociedade, do estado e do direito.
Logo, a punição com vistas, antes de tudo, a restabelecer a igualdade violada pelo ato criminoso – quando um indivíduo furta, ele está, em última análise, estabelecendo uma relação de desigualdade na sociedade – torna-se, assim, um problema moral antes de legal. Por essa razão, para que possamos ser também moralmente justos no exercício do direito de punir, a punição dos crimes deve atender a duas exigências: defender a vítima e fazer com que o criminoso, através da pena, recupere a racionalidade perdida, base de todo o relacionamento humano. O castigo concebido como vingança e o abolicionismo penal negam, um e outro, esses dois aspectos inseparáveis da natureza da punição.
Uma reflexão pública sobre a questão da punição e da pena, que se situe para além das importantes dimensões sociológicas, econômicas, antropológicas e jurídicas dessa questão, tem ocorrido em diferentes países, como na Grã-Bretanha, na França, na Itália e na Espanha. A questão da segurança deve, assim, ser precedida por um debate público, que tenha por objetivo estabelecer os fundamentos do sistema de segurança no estado democrático de direito. No Brasil, essa reflexão sobre o sistema penal somente receberá a prioridade espiritual, cultural e social que lhe é devida nas sociedades democráticas quando a inteligência nacional estiver esclarecida sobre a necessária fundamentação filosófica da punição.
Para encerrar, a pesquisa pode contribuir para a melhora do sistema prisional no Brasil. No entanto, falta uma investigação mais criteriosa, que se liberte dos preconceitos ideológicos, examine a gradação das penas, suas condições de cumprimento e que possa contribuir para a necessária reforma do sistema penal – leis e instituições – no Brasil, que assegure um sistema mais justo e eficiente.
Fonte: Empório do Direito, 15 de maio de 2016.
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