Entre os campos de batalha onde as guerras políticas do nosso tempo são travadas, a universidade hoje ocupa um lugar de destaque. Que a política se discuta no ambiente acadêmico não é particularmente surpreendente – de certo isso é esperado. A impressão de muitos, no entanto, é a de que esse debate está se tornando tóxico e improdutivo, fraturando redes de relacionamento colaborativo no meio acadêmico e prejudicando a produtividade científica em diversas disciplinas, principalmente nas áreas de ciências sociais e humanas. A pergunta que parece atormentar aqueles envolvidos no problema é: Como promover a discordância construtiva e a diversidade de pontos de vista na educação superior? A percepção que motiva essa pergunta parece ser a de que a universidade hoje se tornou um ambiente hostil ao embate de ideias e à pluralidade política, um lugar onde dogmas monolíticos e tribalismos ideológicos restringem o crescimento intelectual dos membros da comunidade acadêmica.
Esse tema hoje adquiriu uma presença imponente no debate público. Não apenas ele frequentemente aparece na mídia e incendeia as redes sociais, mas ele também já motiva movimentos políticos e organizações civis que se propõem a tomar ação diante do problema. Um dado alarmante no entanto chama a atenção: a própria comunidade acadêmica pouco fez até agora para orientar essa discussão. Para aqueles interessados em buscar estudos científicos, dado empíricos e abordagens teóricas produzidas pela universidade brasileira sobre esse tema, saltará aos olhos a escassez de material disponível. Não existe – até onde eu sei – nenhum esforço organizado dentro do meio acadêmico brasileiro para medir os efeitos da polarização política e da intolerância ideológica na educação superior brasileira.
Essa situação não é sustentável. A demanda social por reformas que promovam a liberdade de expressão e a tolerância ideológica na universidade não pode mais ser ignorada. Por mais que discorde da orientação adotada pelos movimentos que hoje lidam com esse tema, a universidade não pode abdicar do seu papel de lidar com ele também. Pelo contrário: já deve ter se tornado claro para a comunidade acadêmica que se ela escolher ignorar esse problema, outras organizações certamente irão se apropriar dele – e os projetos propostos por esses movimentos não necessariamente serão os mais salutares. Reformas virão, isso é certo – apenas a hora e a maneira como virão permanece em aberto.
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Esse artigo não tem a pretensão de sugerir uma solução para os males da universidade, mas ao invés disso propor um caminho para que essas soluções possam surgir de dentro da própria universidade. Contamos, felizmente, com um exemplo modelar nesse sentido. O Brasil não é o único país onde a educação superior se viu abalada por um clima polarizado e politicamente intolerante, e nos Estados Unidos muitos acadêmicos já trabalham ativamente para lidar com a situação. Para organizar esforços nesse sentido, em 2014 o psicólogo social Jonathan Haidt fundou a Heterodox Academy, que hoje conta com mais de 2,500 membros entre professores, pesquisadores, funcionários e alunos de pós-graduação. A organização hoje oferece uma plataforma indispensável para pesquisadores preocupados com o problema da polarização e intolerância política na universidade.
Para fundar a organização, Haidt foi obrigado a levantar uma discussão muitas vezes desconfortável para um acadêmico profissional: a falta de diversidade política no meio universitário, principalmente nos departamentos de ciências sociais e humanas. A organização se tornou então um colaborativo de pesquisadores que procura realizar e divulgar estudos sobre as causas e efeitos dessa falta de diversidade na educação superior, assim como apontar caminhos para tornar a universidade um ambiente mais politicamente tolerante. Entre as justificativas dadas por Haidt para esse trabalho está a ideia de que quando praticamente todos em um determinado campo de estudo compartilham a mesma orientação política, muitas ideias podem permanecer inexploradas, muitas pressuposições podem se tornar ortodoxias incontestadas, e as tendências naturais do ser humano ao raciocínio motivado e ao viés de confirmação se tornarão desgovernadas. A queda na qualidade do ensino e pesquisa nas universidades americanas devido à falta de diversidade política se tornou, desde então, um dado empiricamente comprovável através do trabalho divulgado pela Heterodox Academy.
Venho tentando nos últimos meses divulgar o trabalho dessa organização com o intuito de replicar algumas de suas iniciativas no Brasil. Na minha experiência, alguns obstáculos costumeiramente se apresentam. A começar pela percepção de que tal iniciativa só poderia ser “uma causa da direita”. Desconsiderando por agora o fato de que a maioria dos membros fundadores da Heterodox Academy se identificam como politicamente de esquerda (um dado que por si só já poderia servir como contestação), devemos compreender de onde tal percepção pode surgir. De fato, é impossível falar sobre a falta de diversidade política no meio acadêmico sem falar sobre a predominância ideológica da esquerda nesse meio. Isso muitas vezes pode levar a uma ênfase na “disputa por espaços”, onde a promoção da diversidade política na academia é equacionada a um jogo de soma zero entre direita e esquerda – nessa ótica, um “lado” só poderia ganhar espaço às custas do outro. Talvez por isso, as organizações que surgiram no Brasil para lidar com esse assunto parecem ter tido pouco sucesso até o momento em evitar revestimentos políticos e uma postura combativa, por vezes acirrando ainda mais as tensões e agravando a crise.
Outro caminho deve ser buscado. A começar por uma justificativa estratégica: se a ampla maioria da comunidade acadêmica é realmente de esquerda, que sucesso uma empreitada desse tipo poderá ter se restringir seus apoiadores somente à direita política? Para que uma iniciativa que deseja reformar a educação superior possa prosperar, aliados devem ser buscados ao longo do espectro político, enfatizando sempre o valor da discordância construtiva. A justificativa para essa postura também pode aqui invocar princípios de coerência: se o objetivo de uma organização é promover caminhos para superar a polarização política e promover a diversidade política no meio acadêmico, não deveria ela própria se pautar por ideais pluralistas e conciliatórios? O desafio é imenso mas não pode ser contornado: a promoção da diversidade política na universidade deve se tornar uma causa de todos, e não de um nicho político qualquer. Se isso não se tornar ponto passivo para qualquer organização que se proponha a lidar com o tema, ela já tropeçou no primeiro passo.
Outro obstáculo importante também precisa ser enfrentado. Embora exista hoje um acúmulo imenso de relatos sobre a intolerância e falta de diversidade ideológica no meio acadêmico, existe também – como mencionado no início desse artigo – uma gritante escassez de estudos que buscam enquadrar o fenômeno em pesquisas quantitativas e qualitativas de modo a produzir um diagnóstico científico da situação. A promoção da diversidade política na universidade não depende apenas de princípios e ideais, mas também da apresentação de dados empíricos incorporados a interpretações teóricas sistemáticas e coerentes. Muito mais do que a política, a ciência deve ser a principal aliada dessa iniciativa. Aqui, novamente, os estudos produzidos pela Heterodox Academy oferecem um modelo a ser replicado. Graças a eles, a busca pela discordância construtiva e tolerância ideológica nas universidades americanas hoje pode contar com o auxílio de um amplo debate acadêmico pautado por estudos rigorosos realizados por cientistas sociais altamente credenciados. Se tivermos qualquer esperança de um debate produtivo dessa questão no Brasil, aqui também precisaremos cobrar e apoiar o engajamento da nossa comunidade científica nessa questão.
É certo que o tema ainda é encarado com relutância pelos nossos acadêmicos profissionais, e muitos deles preferem se dedicar a assuntos menos polêmicos. Qualquer um familiarizado com o ambiente universitário sabe que evitar questões que possam atrair rótulos e estigmas infelizmente faz parte da rotina. Isso é outro desafio grave, pois a auto-censura pode ser tão corrosiva para a livre circulação de ideias quanto a censura explícita e institucionalizada – de um jeito ou de outro, são questões importantíssimas que deixam de ser exploradas por receio de incorrer represálias sociais. É preciso que nossa comunidade acadêmica reconheça, no entanto, que evitar essas questões oferecerá no máximo um falso senso de segurança àqueles preocupados em preservar suas carreiras e reputações. Afinal, que espécie de prestígio a universidade como um todo será capaz de preservar se ela não é mais reconhecida como um ambiente que lida abertamente com as discussões relevantes do nosso tempo? Qual será a direção que esses debates tomarão quando não auxiliados pelas nossas instituições de pesquisa? Poderá a comunidade acadêmica se queixar do resultado de uma discussão da qual ela optou por não participar? Essas perguntas se tornam ainda mais pertinentes quanto o debate em questão é a própria universidade e o papel que ela deve ter na promoção da tolerância política e da diversidade intelectual.
De modo a motivar nossa comunidade acadêmica a se engajar nesse assunto, é preciso agora enfatizar não mais o risco mas o tamanho da oportunidade que se apresenta aqui. A demanda para que esse tema seja abordado é imensa, e instituições de ensino superior pouco aproveitaram essa demanda para produzir uma oferta apropriada. Uma universidade que abrace um projeto desse tipo dificilmente não terá destaque assegurado entre aquelas que promovem a tolerância política e a diversidade intelectual. Entre os acadêmicos preocupados com a reputação negativa que a universidade vem adquirindo por conta desses problemas, poucos poderão dizer estar fazendo mais para restaurar o prestígio das ciências sociais e humanas do que aqueles dedicados a estudar esses problemas a fundo. Entre os projetos de pesquisa disponíveis para pesquisadores profissionais, poucos oferecem tão claramente a chance de mostrar para o resto da sociedade que a curiosidade científica, a diversidade de ideias e a coragem intelectual ainda são valores cultivados na universidade brasileira.
Por último, devemos reconhecer que não há corta-caminhos para a solução que almejamos. Não há projeto de lei, medida provisória ou passe de mágica capaz de reformar uma cultura universitária – isso levará tempo. A discussão será longa e muito ainda resta ser dito. Mas para que essa discussão seja mais produtiva do que tem sido até o momento, há, certamente, algumas medidas que precisam ser tomadas desde já. O problema que estamos tratando precisa começar a ser encarado como uma questão apartidária que interessa não somente a uma determinada facção política mas a todos que anseiam por uma educação superior de qualidade. Para auxiliar essa abordagem e começar a produzir um diagnóstico apropriado do problema, pesquisadores acadêmicos precisam trabalhar para a formação de uma rede colaborativa que explore o problema via métodos científicos e embasamento empírico. O resultado dessas pesquisas precisa ser disponibilizado de forma ampla e acessível para o público em geral de modo a orientar a discussão sobre o assunto. Instituições de ensino superior precisam abraçar a iniciativa e prestar o seu apoio. Caso vermos essas medidas serem tomadas, dificilmente não veremos também um aumento qualitativo no debate político e intelectual na universidade brasileira.
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Para concluir a proposta contida no presente artigo, sugeriria a adoção dos seguintes princípios para pesquisadores e instituições de ensino superior interessados em lidar com o tema:
1) A vida acadêmica exige um ambiente para o encontro de perspectivas múltiplas, para a livre expressão de ideias e para o embate de pontos de vista divergentes.
2) Todas as disciplinas e instituições acadêmicas devem promover e propiciar a diversidade intelectual e a tolerância a pontos de vista diversos.
3) Todos os integrantes do meio acadêmico devem prezar e defender a diversidade de pontos de vista, a compreensão mútua e a discordância construtiva em seus departamentos e instituições acadêmicas.
Com base nessa proposta, inspirada na declaração de princípios da Heterodox Academy, sugeriria também a formação de uma rede colaborativa de pesquisadores acadêmicos pautada pelos seguintes objetivos:
1) Conscientizar a comunidade acadêmica e o público em geral sobre os desafios que a polarização ideológica e a falta de diversidade política no meio acadêmico oferecem para a educação superior.
2) Realizar pesquisas e levantar dados sobre como esses problemas afetam a educação superior e a produção acadêmica.
3) Desenvolver ferramentas teóricas e práticas para a comunidade acadêmica despolarizar o campus universitário, aprimorar a qualidade da pesquisa acadêmica, garantir a liberdade de expressão e promover a diversidade intelectual na educação superior.
Termino aqui expressando a minha absoluta confiança de que ainda existe na universidade brasileira a força e a vontade para fazer uma iniciativa desse tipo prosperar.
Fonte: “Estadão”, 10/07/2019