Novas possibilidades atingem apenas um pequeno grupo da população que tem dinheiro para acessá-las
A paulatina abertura iniciada pelo presidente de Cuba, Raúl Castro, tem gerado uma distorção em um dos grandes princípios da revolução socialista liderada há 55 anos por Fidel Castro: o da igualdade de oportunidades. Em muitos casos, as novas possibilidades que afloram para os cubanos atingem apenas um pequeno grupo da população que, por diferentes meios, tem dinheiro para acessá-las. As mudanças na relação do Estado, totalitarista, com a população começaram a acontecer desde que Raúl assumiu plenamente o poder, em 2008, depois que seu irmão Fidel ficou doente. A mais recente delas é a liberação de venda de carros. Em tese, desde janeiro deste ano, qualquer cubano que quiser comprar um carro não precisa mais de autorização do governo, basta ir a uma concessionária. Na prática, no entanto, o que acontece é que os carros zero km custam caríssimo, muito além do que a grande maioria dos cubanos pode pagar.
— Um carro pequeno, como o Peugeot 206 não sai por menos de US$ 130 mil. Quem pode comprar? A abertura é ilógica: se abre e se fecha novamente na mesma hora por conta de uma limitação econômica — afirma Carlos, um taxista que trabalha para o Estado e prefere não dizer seu sobrenome.
Teto salarial é de US$ 50
Para se ter uma ideia do abismo que separa o cubano médio da realização do sonho de comprar um carro zero, o teto do salário dos servidores do Estado — classe que engloba cerca de 80% da força de trabalho em Cuba — é cerca de 900 pesos cubanos por mês (algo em torno de US$ 50). Mas outras mudanças vêm transformando a cara da ilha dos irmãos Castro. Desde 2010, quem quiser, e puder, tem autorização para abrir seu próprio negócio.
O governo de Raúl já deu permissão para que mais de 180 atividades possam ser desenvolvidas de forma independente do Estado. Desde então, 400 mil pessoas migraram para esse ramo. Uma das atividades privadas que mais vêm crescendo é a abertura de restaurantes, chamados de “paladares”. A capital, Havana, está cheia deles, dos mais simples, montados no quintal da casa de seus proprietários, aos mais sofisticados, como o famoso Dona Eutímia, que recebe chefes de Estado em um pequeno estabelecimento próximo à centenária catedral de Havana Velha.
Mais uma permissão que tem mexido com a cabeça da população da ilha socialista é a de viajar. Sob Fidel, só podiam deixar Cuba legalmente servidores do governo em missões oficiais. Depois que Raúl assumiu, permitiu a saída do país dos cidadãos que quisessem fazê-lo. Para isso, teriam que pagar uma taxa de US$ 100 para fazer o passaporte e outras duas taxas para obter autorização para viajar, somando mais US$ 100, além dos custos do visto do país para onde se desejava ir. Quem tivesse filhos, não podia viajar com eles. Desde o ano passado, facilitou-se um pouco mais: os viajantes podem embarcar em família e o governo cortou as taxas de autorização. Mesmo assim a possibilidade de ir a outros países ainda está ao alcance de poucos.
— O Raúl não acredita nessa máxima de impor restrição em cima de restrição, ele tem suspendido uma atrás da outra. Diferentemente de Fidel, ele não acha que o Estado deva cuidar de tudo, e sim focar naquilo que é realmente importante — pondera Marc Frank, jornalista americano radicado em Cuba há mais de 20 anos e autor do livro “Cuban revelations: behind the scenes in Havana”.
Em Cuba, as residências são concedidas pelo governo e até recentemente não era possível vendê-las ou alugá-las. Agora é. No campo, já é permitido ao produtor plantar e comercializar sua safra com compradores privados também, não apenas com o governo.
Outra concessão que Raúl fez foi autorizar cubanos a se hospedarem em hotéis, que eram restritos aos turistas estrangeiros. Ainda assim, a vida do cubano médio é repleta de limitações impensáveis em pleno século XXI. Não há internet nas casas, apenas em escritórios comerciais, hotéis e lan-houses. Para acessar a rede mundial dos computadores, o cubano tem que ir a um desses locais e pagar em torno de US$ 5 por hora. Mais um privilégio restrito aos que conseguem ganhar a vida ou fora do serviço estatal ou complementando-o das mais diversas formas.
— Em Cuba sobrevivemos porque fazemos negócios ilegais. O governo faz vista grossa. Me preocupo com minha filha. Aqui, diferentemente de outros países, não adianta estudar, que não se chega a lugar nenhum. As pessoas não saem de Cuba por problemas políticos ou ideológicos, mas por problemas econômicos — conta Carlos.
Félix é um dos muitos moradores de Havana que vivem de bico. É DJ nos fins de semana e ali conhece potenciais clientes — turistas que querem comprar charutos cubanos. Depois que o governo permitiu a circulação de táxis particulares, Félix comprou um carro de “quinta mão” e presta o serviço que hoje é a principal atividade que compõe sua renda mensal.
Um dos principais cartões-postais de Havana, o daqueles carrões das décadas de 50 e 60, tem sido cada vez mais contaminado por outros carros mais novos (não tão novos). Mesmo assim, ainda é difícil entrar em um táxi em que o cinto de segurança funciona e o cheiro de gasolina não esteja impregnado nos bancos rotos do automóvel. O cinto não faz falta. Em Cuba, o ritmo é outro, bem mais lento do que o das capitais das grandes metrópoles. O turista que passeia de carro pode apreciar o famoso Malecón, o calçadão do centro de Havana, a uma velocidade que não passa de 50 km/hora.
Fonte: O Globo
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