O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Cezar Peluso, cassou ontem à noite a liminar que permitia que dois bacharéis em Direito do Ceará exercessem a advocacia independentemente de serem aprovados no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A íntegra da decisão não foi divulgada. (Jornal “O Estado de S. Paulo”, 4/1/2011)
Trocado em miúdos, alguém só pode exercer advocacia no Brasil se a OAB deixar. O Presidente do STF acatou a ação por tratar-se de matéria constitucional. A OAB é o único grupo de interesse brasileiro que faz parte individualmente da Constituição Brasileira. Assim sendo, lei é para ser cumprida. Isso não quer dizer, entretanto, que o que a lei diz esteja certo ou seja legítimo.
O presidente da OAB, Ophir Cavalcante, comemorou a decisão. “Ela reafirma a importância do exame de ordem como instrumento de defesa da sociedade. A decisão garante, ainda, que a qualidade do ensino jurídico deve ser preservada”, afirmou. (O Estado de São Paulo, 4/1/2011)
Todas as regulamentações de profissões dizem sempre que elas se destinam a defender a sociedade contra maus profissionais, como se vê pela declaração do presidente da OAB, no parágrafo acima.
Ao regulamentar uma profissão, de motoboy a médico, ou de jornalista a engenheiro, não aconteceu nada mais do que os lobistas da profissão vestirem-se das belas roupagens de paladinos da defesa dos interesses da sociedade alegando agir em benefício dos interesses dos consumidores. Por isso, dizem, as regulamentações, limitam o exercício de cada profissão a pessoas que quem já é advogado ou motoboy acha que são competentes para exercer a profissão em benefício e com menor risco para o público.
O que essas leis não deixam claro, no entanto, é que, ao mesmo tempo que dizem quem pode exercer a profissão, elas estão dizendo em alto e bom tom, só que não de maneira clara, quem não pode exercer a profissão. Tudo isso fantasiado de defesa do consumidor.
O verdadeiro objetivo, no entanto, é outro: trata-se de controlar o mercado para que não haja excesso de oferta de profissionais pela simples razão de que o que é raro é caro e o que é abundante é barato. Muitos advogados (que seria o que teríamos se a “benção” da OAB não fosse obrigatória) baixariam os preços cobrados pela profissão, coisa que, certamente não é do interesse da maior parte dos advogados estabelecidos).
Assim sendo, todas as regulamentações profissionais, não importa como se apresentem, limitam o direito que todos os cidadãos devem ter ao trabalho e o direito dos consumidores de escolherem os profissionais que bem entendam para lhes prestar serviços, independentemente da permissão de ordens, conselhos e entidades similares que, na verdade funcionam muito mais como sindicatos de autoproteção do que como defensores dos consumidores.
Com isso, interesses de possíveis prestadores de serviços são contrariados na medida em que se veem impedidos de oferecer seus serviços simplesmente porque o estado (pressionado pelos lobbies pró-regulamentação profissional exercidos por quem já é membro da profissão) não deixa. Assim, o estado, em matéria de regulamentações profissionais, não passa de uma imensa agência protecionista dos interesses de quem já se estabeleceu nas profissões.
Isso pode acontecer de diversas formas que vão do pitoresco ao cruel. Pitoresco: na década de 1950, um veterinário comunista não podia tratar de vacas enfermas no estado de Washington nos Estados Unidos. Difícil ver a relação da terapia vacum com a ideologia de Karl Marx. Só é pitoresco para quem conta a história. Para a vaca doente, para seu dono e para o veterinário comunista, ela é simplesmente cruel.
O Brasil regulamentou recentemente a profissão de motoboy. A crueldade reside em que nem os motoboys deixarão de sofrer acidentes e morrer porque agora existe uma burocracia que regulamenta sua profissão, nem os serviços prestados serão melhores. O estado simplesmente coletará um pouco mais de impostos de jovens, em geral, pobres que fizeram um investimento em comprar uma moto para tentar melhorar de vida através de uma avenida que lhes estava aberta antes da regulamentação profissional.
Santiago, capital do Chile, nos tempos nada saudosos de Pinochet, desregulamentou a prestação de serviços de táxi: qualquer um poderia pintar seu carro de preto na parte de baixo, amarelo na parte de cima e sair pelas ruas prestando serviço de táxi, cobrando o preço que bem entendesse. Assim, você poderia ter uma Mercedes-Benz e cobrar um preço bem baratinho (o que lhe atrairia muitos clientes) ou cobrar preços bem altos no seu fusquinha. Se o negócio seria viável a longo prazo era um problema seu. A única regulamentação que o governo estabeleceu foi que, a bem de reduzir o tempo gasto nas barganhas de preços (já que não havia tabelas nem limites), todos os táxis necessitavam ter afixado no para-brisa o preço que pretendiam cobrar de possíveis clientes. Isso se destinava a evitar grandes e demoradas barganhas que, certamente, atrasariam o trânsito com grandes engarrafamentos.
Advogados, médicos, açougueiros, jornalistas, sociólogos, motoristas de táxi e motoboys e quaisquer outros profissionais são absolutamente iguais perante o mercado de trabalho. Não existe nenhuma razão para que haja requerimentos específicos que impeçam a prestação de serviços de qualquer um deles.
Fui, recentemente, submetido a uma cirurgia cardíaca. Como estou escrevendo esse artigo, sobrevivi, e, tudo indica, bem. Meu cirurgião foi indicado pelo meu cardiologista clínico e pouco me importou se ele estava numa situação legal. O que cuidei foi de falar com pessoas de minha confiança para ver se o endossavam e se tinham confiança nele. As informações foram boas e entrei na faca com toda segurança.
É claro que seria difícil ele ter uma reputação se não tivesse hospitais para praticar sua profissão, coisa que hoje, infelizmente, só é possível sendo membro de uma profissão especializada.
Milhares de pessoas acorrem cada mês a Abadiânia, cidade goiana nos arredores de Brasília, para tratar-se com um cirurgião “espiritual”. Muitas dessas pessoas, desenganadas pela medicina tradicional, vêm do exterior para tratar-se com ele. Ignoro as taxas de cura, mas pergunto: por que deveriam pessoas que estão desenganadas pela medicina tradicional ter-lhes negado o direito de tentar alguma coisa na qual acreditam? O dinheiro, o desespero e o sofrimento são delas. Devem, portanto, ter o direito de fazer isso. Como o tratador de Abadiânia não se intitula médico, felizmente não é incomodado pelo Conselho Regional de Medicina.
Um outro caso de regulamentação, esse nada pitoresco — pelo contrário, extremamente cruel. Ninguém se lembra dos milhares de norte-americanos que foram literalmente fatiados através de amputações sucessivas ao longo dos anos, entre os cinquenta e poucos até meados da década de noventa simplesmente porque não podiam tratar-se tomando cloridrato de metformina, um remédio para diabéticos, descoberto na França, mas só aprovado os Estados Unidos em meados da década de 1990.
Não sou eu que conto, é o Dr. Manuel Navia, descobridor da estrutura molecular do vírus da Aids. Tudo isso aconteceu porque a FDA (a ANVISA americana) não liberou o uso da metformina nos Estados Unidos até meados da década de noventa. Argumentavam que era fundamental proteger os diabéticos contra os males que podiam advir de um remédio que não fosse “totalmente” seguro.
O ponto é que não existe 100% de segurança e 100% de eficácia. Alguma conciliação precisa ser feita, e ninguém melhor para fazê-la do que quem sofre do problema, em vez de ordens, conselhos ou agências governamentais que se atribuem o direito de nos defender contra aquilo de que não precisamos ou não queremos ser defendidos.
Publicado no site “Ordem Livre” em 10/01/11
Sou advogado, comecei a estudar aos 51 anos. Formei-me. Tenho OAB/RN. Concordo de ponta a ponta com o articulista. Nossa OAB (uma tremenda corporação típica do período medieval) é diferente da AMERICAN BAR ASSOCIATION e do sistema americano que licencia formandos para exercer a profissão. Aqui é um feudo.
A OAB não pode falar em nosso nome. A maioria de nós não concorda com essa prática medieval. OAB sempre foi uma corporação de ofício com o agravante de não ter competência para julgar quem está apto ou não. Meu comentário ao texto do Diogo, não saiu. Espero que esse saia. Contem comigo para qq movimentação,no sentido de devolver aos formandos o direito de exercer a profissão que esolheram. O péssimo nível da prestação jurisdicional, não tem nada a ver com eles. A questão é, pq interessa a OAB a manutenção dessa elitização do judiciário.