A demografia não tem partido. Dar uma roupagem ideológica ao assunto equivale a imaginar que procriar mais seria “de direita”
Entre os muitos pontos positivos do IBGE — um órgão técnico que é um ativo do país e do qual todos os brasileiros têm motivos para se orgulhar — está o de possuir uma área voltada para projeções demográficas, que apresenta estimativas populacionais extremamente pormenorizadas, essenciais para o traçado das políticas públicas de longo prazo.
Por melhores que sejam tais estimativas, porém, elas não conseguem evitar um problema inerente a qualquer projeção: ninguém possui uma bola de cristal. Assim, ao projetar qual se estima que seja o comportamento de parâmetros como taxa de fecundidade ou de mortalidade, o órgão possui pontos referentes ao passado e com base neles projeta qual espera que seja o comportamento futuro das variáveis. Pequenos desvios em relação aos parâmetros utilizados, entretanto, geram no longo prazo diferenças muito grandes. Imaginemos por exemplo um universo de 100 milhões de pessoas. Um crescimento de 0,8% durante 40 anos levará a variável a alcançar o nível de 138 milhões de pessoas. Já um crescimento anual de 1,0% implicaria ter, 40 anos depois, um número muito maior, de 149 milhões de pessoas.
Muitos anos atrás, quando ainda não se dispunha dos resultados do Censo do ano 2000, o IBGE publicou a “Revisão 2000” com projeções demográficas até o ano de 2050. Em 2004, voltou a refazer as contas e em 2008 repetiu o exercício. As mudanças entre uma revisão e outra costumam ser bastante significativas. Nas revisões de 2004 e 2008, foram constatadas uma maior longevidade e uma redução da fecundidade. Agora, em 2013, a nova revisão foi parecida com a de 2008, mas estendendo as projeções até 2060. Hoje, 11% da população tem 60 anos ou mais. Em 2060, essa proporção será de 34%. Que país legaremos a nossos filhos? Convém que o Brasil se prepare para uma nova realidade demográfica. Paul Mc Cartney disse certa vez que “yesterday came suddenly”. Temos que pavimentar o caminho do futuro para que as gerações vindouras possam lidar com a combinação de uma maior sobrevida e de um menor número de filhos.
Confesso que considero as manifestações radicais contra mudanças da Previdência, feitas em nome de um posicionamento ideológico, expressões que se situam entre a ignorância e o delírio. É claro que compreendo por que as pessoas se opõem a trabalhar por um maior número de anos — não é preciso ser um luminar para entender por que se trata de uma temática impopular. O que não faz sentido é associar as teses reformistas na matéria a uma matriz política. A demografia não tem partido. Dar uma roupagem ideológica ao assunto equivale a imaginar que procriar mais — diminuindo a necessidade de uma reforma — seria “de esquerda”, enquanto que viver mais — o que aumenta o desafio da sustentabilidade previdenciária — seria “de direita”. Isso é ridículo. Bertrand Russell declarou certa vez que “nenhuma opinião deveria ser defendida com fervor. Ninguém mantém fervorosamente que 7×8 = 56, pois se pode mostrar que esse é o caso. O fervor apenas se faz necessário quando se trata de sustentar uma opinião que é duvidosa ou falsa”. O fervor antirreformista em matéria previdenciária dos grupos que se opõem a uma mudança em nome da ideologia os aproxima de quem defende que 7×8 = 44. Sempre digo nas minhas palestras sobre o tema que a Previdência jamais pode ser encarada como uma simples questão matemática — mas ela é também uma questão matemática. A chave está em combinar a fundamentação técnica com as condições políticas para fazer o que deve ser feito — e isso é uma arte.
Um ex-diretor do Programa Global de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde dizia que “é duro chegar à velhice. É quando percebemos que nosso tempo passou e a esperança de antes se transforma em desespero”. Numa etapa mais difícil da vida, é compreensível que os idosos se sintam ameaçados. Entretanto, nenhuma reforma vai mudar os direitos dos idosos. É para aqueles que estão hoje no mercado de trabalho e ainda não estão aposentados que uma reforma deve ser dirigida. Podemos manter a inércia e não fazer nada. O IBGE, porém, nos informa que nesse caso seremos atropelados por um trem. Está na hora de o governo parar de fazer cara de paisagem diante do problema e assumir a liderança desse debate.
Fonte: O Globo, 14/10/2013
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