Eu fui dragado pela então chamada Etnologia Indígena muito cedo. Tinha uns 20 anos quando pelas mãos de Luiz de Castro Faria fui levado ao Museu Nacional e iniciado por um entusiasmado jovem Roberto Cardoso de Oliveira nos mistérios luminosos das sociedades sem escrita, grupos tribais com uma tecnologia modesta e um assombroso simbolismo, mas sempre tidos como “primitivos”, “atrasados” e “selvagens”.
Nos anos 60, quando isso acontecia comigo, a vida política brasileira girava em torno do binômio desenvolvido/subdesenvolvido. Era urgente, dizia-se, “mudar as estruturas!”.
Logo fui apresentado ao pensamento de Claude Lévi-Strauss. Um primeiro momento de reflexão foi sobre o ensaio “Estrutura Social” (publicado no livro “Antropologia Estrutural”, em 1958), mas apresentado e discutido numa reunião internacional em 1952 nos Estados Unidos. Antes, eu havia trabalhado com o livro “Social Structure”, de George Peter Murdock, professor em Yale. Fui casado com a senhora “estrutura” por algumas décadas e, pensando bem, jamais pedi um divórcio. Cada geração tem uma palavra mágica – e a dos meus contemporâneos foi “estrutura”.
A “estrutura” no singular era vista como um instrumento para o entendimento da sociedade. Já “as estruturas” definiam uma substância histórica claríssima feita de instituições e práticas sociais atrasadas – como o feudalismo rural brasileiro – a serem radical e facilmente transformadas pelo Estado. Na medida em que me tornei um pesquisador de povos indígenas e fui me civilizando, meu destino foi marcado mais pelo primeiro significado do que pelo segundo.
Minha primeira viagem de campo foi realizada entre agosto e novembro de 1961. Nesse período, vivi com os índios Gaviões do Sul do Pará, como provam as 600 páginas escritas em cadernos de capa verde musgo, de acordo com instruções do meu professor. O “diário de campo” era para os antropólogos o mesmo que a leitura do Breviário para os padres. Coisa sagrada esse registro de tudo o que podíamos observar. Meu diário foi aberto no dia 8 de agosto, em Marabá, e fechado em 30 de outubro de 1961, na aldeia do Cocal.
No dia 15 de agosto, eu estou em Itupiranga, Pará, e me preparo para cruzar o Tocantins e seguir para Leste, na direção do que hoje é Nova Ipixuna, com o objetivo de chegar à Aldeia do Cocal com meu companheiro de aventura Júlio Cezar Melatti, um grande e generoso antropólogo, hoje professor emérito da Universidade de Brasília. Em 18 de agosto – depois de um dia e uma noite na mata – chegamos à aldeia. Por onde começar? Eis a pergunta que todo etnólogo faz a si mesmo, tal como um menino num parque de diversões, um prisioneiro na cela, ou um noivo em lua de mel.
Todas as entradas do meu diário revelam uma recorrente dificuldade em lidar com o mundo aborígine. Muito angustiado, escrevo: “Eles falam e eu não entendo, eu falo, eles não entendem”. A marca desses primeiros dias foi uma aproximação física um tanto exagerada – eles nos tocam para ver se somos reais. Tudo o que faço é visto e comentado: não há privacidade. Comemos com eles e descobri que o estudo da “estrutura” promovia fome. Estava enrascado. A aldeia ficava a um dia de viagem de Itupiranga (que, na época, tinha umas seis ruas) e Itupiranga ficava a um dia de Marabá. Na aldeia, 15 homens, 6 mulheres e apenas 2 meninos exprimiam, debaixo do nome de “Gaviões”, uma forma de humanidade.
Estava antenado na teoria das estruturas, mas não tinha rádio. Os índios, por sua vez, não queriam saber de suas tradições e só falavam dos seus mortos pelo contato conosco – os estrangeiros-inimigos. Naquele tempo eu não sabia nada das perdas e da morte. Estava protegido por minha alucinação antropológica.
Mais para dentro do mato havia um posto de extração de castanha com uns seis ou sete trabalhadores comandados por um chefe chamado Lourival. No dia 29 de agosto de 1961, ele falou da renúncia de Jânio Quadros (ocorrida no dia 25) e da crise institucional que reinava no que chamava de “Sul” (o Brasil) que, como disse, estava “vivendo uma cagada”. Uma das muitas que infelizmente tenho testemunhado em minha vida.
Estava emparedado entre duas estruturas. A “social” dos índios, que eu tinha a obrigação de desvendar e não sabia como; e a do Brasil, que, pelo que tudo indicava, começava a mudar para pior.
Mesmo em meio a essa maluquice iniciatória, porém, eu havia estabelecido um plano para enviar e receber cartas. Um certo João da Mata, logo identificado como um possível parente, prestou-se a receber nossa correspondência e enviá-la às nossas mãos. Recebemos as primeiras cartas no dia 31 de agosto, entregues por um jovem caçador que passou rápido pela aldeia.
No final do trabalho, de volta a Itupiranga depois de passar fome e ter sido vítima de malária, encontramos o prestativo senhor de nossas cartas.
Houve um confronto: por que, perguntamos, toda a nossa correspondência fora violada? Ora – respondeu João da Mata -, porque eu não acreditei que vocês fossem cientistas. Esse interesse pelos “cabocos Gaviões” não podia ser verdade. Vocês seriam garimpeiros em busca de ouro ou, quem sabe, espiões americanos procurando urânio. As cartas mostravam que eram cientistas e eu me orgulho de os ter conhecido.
Ao pegar o “motor” que ia nos levar de volta a Marabá e, dali, ao Brasil que eu tanto queria mudar, eu ainda ouvia essas palavras. Elas jamais saíram da minha cabeça…
Fonte: O Estado de S. Paulo, 10/04/2013
OK! Sugiro-lhe a leitura do texto de Alexandre Coutinho Pagliarini sobre democracia, esquerda, direita e direitos humanos.