O antropólogo e articulista do Instituto Millenium Roberto DaMatta há alguns anos chama a atenção em suas pesquisas para o comportamento do brasileiro que relativiza regras e abusa do “jeitinho” perante normas e leis.
No seu livro mais recente, lançado pela editora Rocco, “Fé em Deus e pé na tábua – Como e por que você enlouquece dirigindo no Brasil” (2010), DaMatta analisa como o brasileiro age perante as leis de trânsito, o respeito ao outro e em relação à própria segurança sobre duas rodas. A pesquisa que rendeu o livro foi encomendada pelo Governo do Espírito Santo e sustenta a premissa de que assim como o cidadão que se acha “esperto”, o motorista brasileiro percebe quem segue as regras como “um babaca.”
Leia a entrevista do jornal Zero Hora na íntegra, realizada quando o autor finalizava o livro:
Recentemente, estudos feitos no Rio Grande do Sul constataram uma contradição percebida facilmente por quem circula por ruas, avenidas e estradas. Para os motoristas gaúchos, os responsáveis pelo trânsito violento e incivilizado são sempre os outros. Agora, uma pesquisa na Grande Vitória, no Espírito Santo, além de confirmar o padrão de comportamento detectado no Estado, ajuda a interpretar as causas desta visão distorcida da realidade.
“Os outros são invisíveis no Brasil. Você não é treinado em casa nem nas escolas para ver o outro como colega, como um sujeito que tem os mesmos direitos de usufruir o espaço de todos. Para nós, é o contrário: o espaço de todos pertence a quem ocupar este espaço primeiro, com mais agressividade”, analisa o antropólogo Roberto Da Matta, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e consultor da pesquisa.
O trabalho, em fase de conclusão, será transformado no livro “Fé em Deus e Pé na Tábua – Como e Por que Você Enlouquece Dirigindo no Brasil”. Autor de clássicos das ciências sociais como “Carnavais, malandros e heróis”, Da Matta sustenta que o trânsito reproduz valores de uma sociedade moderna, mas atrelada ao passado. Trata-se do espelho de um país que se tornou republicano sem abandonar a aristocracia.
“Nós não olhamos para o lado, a não ser quando somos obrigados a olhar. E olhamos para o lado com má vontade, exatamente como acontece com o motorista quando para no sinal, que tem um cara na sua frente que tá te atrapalhando. E um cara atrás de você que também atrapalha”, complementa o antropólogo.
Da Matta falou com o jornal Zero Hora sobre o estudo para o qual prestou consultoria, comentou pesquisas realizadas no Estado e analisou o comportamento dos motoristas:
Entrevista – Roberto Da Matta, autor do livro “Fé em Deus e pé na tábua”
Zero Hora – Nos últimos seis meses, foram divulgadas duas pesquisas sobre o comportamento do motorista no trânsito em Porto Alegre e no Estado. Em síntese, elas dizem o seguinte: o problema são os outros porque eu dirijo bem. Por que o motorista tem uma visão distorcida da realidade?
Roberto Da Matta – Os resultados encontrados em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul são praticamente idênticos aos identificados na Grande Vitória. Todo mundo é cidadão, todo mundo tem direitos, mas respeitando a igualdade do outro. E é exatamente o que caracteriza o trânsito. Por quê? Porque pessoas que estão submetidas às regras das vias públicas brasileiras e do espaço público brasileiro, em geral, não aprenderam a ser igualitárias. A igualdade para nós é menos importante do que a liberdade.
Zero Hora – Por que o Brasil moderno reproduz relações aristocráticas e atrasadas?
DaMatta – Você não mata o menino que existiu dentro de você. Você não mata os antigos hábitos. Você transforma os antigos hábitos, fazendo com que eles dialoguem com hábitos novos, com novas necessidades coletivas. Para mudar o nosso comportamento, nós temos de nos mobilizar, a gente tem de fazer um agenciamento de dentro para fora.
Zero Hora – Até que ponto as relações no trânsito reproduzem as relações humanas de um modo geral?
DaMatta – Elas reproduzem as relações humanas com as quais nós fomos socializados. Dentro de casa, cada um tem seu espaço na socialização brasileira. Fomos criados em ambientes que comportam hierarquias bem definidas: arrumadeira, passadeira, lavadeira. São os últimos ecos de escravidão e de clientelismo que permeiam a sociedade brasileira. Esse quadro cognitivo, emocional, está nas nossas cabeças. Quando você vai para o trânsito, você tem uma situação desagradabilíssima: obedecer no Brasil é um sintoma de inferioridade. É um aspecto que a pesquisa identificou. Quem obedece, quem segue lei no Brasil, é babaca, idiota.
Zero Hora – Numa das pesquisas realizadas no Estado, 69% dos entrevistados dizem que não cometem imprudências ao volante.
DaMatta – (Gargalhada). Maravilha. O estilo de dirigir brasileiro é agressivo. Fomos criados com uma visão da casa como inimiga da rua. É como se o mundo da rua não fosse regrado pelas mesmas regras de casa, que é a regra do acolhimento.
Zero Hora – O título do livro “Fé em Deus e pé na tábua” sugere que o senhor tenha encontrado elementos religiosos no comportamento dos motoristas. É isso?
DaMatta – Com certeza. Noventa e nove por cento dos brasileiros acreditam que têm uma outra vida. Então, se você acredita que este mundo não é o único mundo possível, se há um outro mundo, você pode ir para um mundo melhor.
Zero Hora – A impunidade, ou a sensação de impunidade, contribui para que esta visão aristocrática no trânsito se perpetue?
Da Matta – Quando a gente discute a questão da igualdade, a gente o faz de maneira retórica. Há uma elasticidade grande na cultura brasileira, que tem uma inércia. Você freia, mas o peso da tradição continua. Você tem de preparar a sociedade para as mudanças, o que nós não fazemos no Brasil. A Lei Seca, por exemplo. É maravilhosa porque atingiu o comportamento da classe média.
Zero Hora – A classe média tem um papel reprodutor de valores e costumes?
Da Matta – Exatamente. A classe média é o espelho tanto da elite, que tá lá em cima, quanto dos muito pobres. É o miolo. A Lei Seca provocou uma visão ambígua, e paradoxal, na classe média.
Zero Hora – Na pesquisa que o senhor assessorou, além de traçar um diagnóstico, também aponta caminhos e alternativas?
Da Matta – A alternativa é essa: nós temos de falar mais em igualdade, ensinar mais igualdade. É um negócio chatíssimo. O nosso lema é: “os incomodados que se mudem”. E não é verdade.
Zero Hora – Uma pesquisa realizada na Grande Vitória produz resultados estruturais capaz de se tornar referência para todos os Estados do Brasil?
Da Matta – Como toda pesquisa empírica, você trabalha com tipos. Você trabalha com uma mentalidade, com um tipo, com uma mentalidade, um modelo de motorista. O comportamento que você encontra em Vitória é semelhante ao encontrado no Sul do Brasil, como apontam as pesquisas de que você me fala.
Publicado no jornal “Zero Hora”
é preciso endurecer as leis, punir exemplarmente,
tirar essa gente das ruas!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
dar uma limpada!
Meus clientes são estrangeiros. Quando embarcam de volta, no aeroporto, peço para darem uma resposta positiva e outra negativa sobre o brasileiro. A resposta em geral é altamente elogiosa para nossa acolhida; a negativa: brasileiro é acolhedor, mas com um automóvel na mão ele é um louco!
Vivemos uma síndrome de Ayrton Senna. Tomos querem andar rápido, ser pole position nos semáforos, largar na frente, andar no vácuo do carro da frente, fazer a ultrapassagem puxando o carro para o lado de uma vez. Tudo isso ignorando a vida alheia, o patrimônio dos outros e a própria vida. Somos bestas, ianomamis, vivemos na e para e pela barbárie.