Neste fim de mês, graças a uma instituição bem conhecida e pouco estudada — a amizade — que tanto nos ajuda nas agruras (e no saboreio) desta vida, passei virtualmente uma semana na Carolina do Sul, Estados Unidos, entre Atlanta, Charleston e Seabrooke Island.
Ao longo desses poucos dias frios e chuvosos, desfrutei de uma grata e ensolarada hospitalidade do casal Bete e Conrado Kottak, que nos recebeu e proporcionou raros e ilustradíssimos passeios pelos locais históricos dessas cidades sulistas tão densas de história e memória da guerra civil de 1861-65. Esse conflito que fez o Sul dos Estados Unidos, uma região tão parecida em concepção de vida e trabalho com o Brasil, perder parte de sua identidade, quando foi incorporada por meio da força das armas à “União” então presidida por Abraham Lincoln.
Vale a pena viajar fora do eixo Miami/New York ; ou Chicago/Los Angeles para conhecer o lado mais tradicional da América. Essa região marcada pela escravidão, pelas grandes fazendas de algodão e fumo, por uma economia de exportação primária tocada a escravidão e — tal como o Brasil de hoje — resistente à igualdade e ao liberalismo como estilo de vida.
A ênfase na comida em conjunto e na arte de conversar foi parte do meu deleite quando, em companhia de Conrado Kottak, professor emérito da Universidade de Michigan (Ann Arbor), autor de estudos de Arembepe, de Madagascar, da televisão brasileira e do melhor livro de introdução à Antropologia que li até hoje, discuti minha velha antropologia, pois é o velho que nos renova.
Toda essa jubilância culminou com uma visita à velha casa grande Edmondston-Alston. Para os americanos, assustavam a cozinha separada da casa e as passagens secundárias destinadas aos escravos que viviam em suas senzalas e serviam seus donos em tudo e a toda hora, tal como até hoje ocorre no Brasil. Era uma casa em tudo brasileira. Excediam nesse brasileirismo, como diria Gilberto Freyre, as varandas com vista para o rio que, calmo e misterioso, passava sem parar. Não foi por acaso que George Gerswhin escreveu “Porgy and Bess” exatamente em Charleston, em 1935, para ser o que chamava de uma “ópera americana popular”. Música, comida e o gosto pela sociabilidade familística, eis um traço forte deste Sul tão bem dramatizado, entre outros, por Mark Twain, William Faulkner e Tennessee Williams.
E excedia também, conforme descobrimos no finalzinho da visita pela presença do fantasma de uma de suas donas. Ela, diz o guia, abre portas fechadas e fecha portas abertas. E, quando reina o silêncio escuro dos mortos que tanto nos perturba, faz barulho.
Mas, diferentemente dos fantasmas nacionais brasileiros, não pede por missa nem padre-nossos porque o país não é católico e porque na América são os vivos que controlam os mortos, tal como este mundo controla o outro, como manda a mística luterano-calvinista. A ideia de um “paraíso agora” e não no futuro é o que fez esse Sul virar o Sul desta América ainda voltada para o futuro, apesar desses tempos de fanático direitismo.
Fui dormir pensando mais nos fantasmas do que no Sul do livro “E o vento levou”, escrito em 1936, cuja autora, Margaret Mitchell, morreu atropelada numa das ruas de Atlanta. Quando estava deitado, ouvi um barulho na varanda, mas era apenas um gato que me olhava como se eu fosse o famoso gato preto dos dois livros clássicos de Érico Veríssimo sobre os Estados Unidos, os quais, pensei na hora em que fitei o bichano, me impulsionaram, ao lado de Fred Astaire, Doris Day, O. Henry, Ava Gardner, Frank Sinatra e aquelas camisas com botões nos colarinhos, a conhecer os Estados Unidos.
Lembrei então de uma experiência estranha que vivi em 1990, na Universidade de Brown, quando, ao tomar parte numa conferência sobre a América Latina, fui hospedado numa casa igualmente ilustre e sombria. Ninguém falou em fantasma, mas senti aquela sensação de estar sendo seguido todo o tempo. Onze anos depois, numa outra conferência, desta vez na cidade de Ascona, Suiça, um colega de Brown, o famoso professor Bill Bilman, antropólogo e cantor de ópera, confirmou, surpreso, minha intuição, contando-me o seguinte:
Num outro evento em Brown, a convidada mais bonita foi assombrada noite a dentro pelo fantasma de um rapaz que aparecia sentado ao lado de sua cama. Apavorada ela perguntou naquele estilo americano direto: “What do you want?” (o que você quer?) — a assombração sumiu.
Bill elogiou meu sexto sentido, parte, na sua teoria, de todo bom antropólogo. Melhor observador do que teórico, retruquei que o quente do caso não era a minha sensação, que também senti na Capela Sistina, em pleno Vaticano, mas o fato de a moça se dirigir ao fantasma de modo direto, usando o igualitário “você” e exigindo que ele dissesse o que queria. No caso do Brasil, fantasmas são sempre endereçados com o velho e apropriado “vós” e “senhor” e são eles que demandam.
Afinal, entre nós, como fica provado pela política, são os velhos e os mortos que controlam a vida. Ou pelo menos até hoje tentam fazê-lo. Até que alguém descubra que fantasmas são ficção e só viram realidade quando queremos.
Fonte: O Globo, 27/02/2013
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