“Minha credibilidade não está em jogo. É a credibilidade da comunidade internacional que está em jogo.” O argumento
de Barack Obama cumpre uma função tática de persuasão dos relutantes aliados europeus, mas veicula a falsa noção de que os interesses dos EUA podem ser separados dos interesses da “comunidade internacional”. Na tentativa de convencer os congressistas a autorizar a ação militar, o secretário de Estado, John Kerry, alertou para o perigo de um “isolacionismo de poltrona”, tocando o nervo sensível da crise que está em curso. A “linha vermelha” mais relevante não está na Síria: ela atravessa a sociedade americana.
“Qual mensagem enviaremos se um ditador puder, à vista de todos, matar centenas de crianças com gases sem pagar nenhum preço?”, indagou Obama. Um artigo de Charles Blow no “New York Times” oferecia uma resposta, articulada na
forma de outras perguntas: “Algo deve ser feito. Mas devemos ser sempre nós a fazê-lo? Será que proteger os interesses americanos significa reprimir os horrores do mundo? Será a liderança moral dos EUA esculpida pela lâmina de sua espada?” As notas melódicas do “isolacionismo de poltrona” estão todas aí — e refletem um estado de espírito que perpassa tanto a opinião pública americana quanto sua elite política.
“A guerra deve ocorrer apenas quando os EUA são atacados ou ameaçados, ou quando os interesses americanos são atacados ou ameaçados”, disse o senador Rand Paul, um expoente do Tea Party republicano. “Não somos o policial do
mundo, nem o juiz e o júri”, proclamou Alan Grayson, um deputado democrata da ala progressista. No pátio do isolacionismo, reúnem-se alegremente a direita e a esquerda. A linguagem isolacionista forma uma tradição, pontuada por um sintomático cortejo de senhas. Em 1940, os dirigentes sindicais antiguerra crismavam os britânicos como “plutocratas” e “imperialistas”, acusando-os de arrastarem os EUA para um segundo banho de sangue, enquanto o aviador Charles Lindbergh preferia culpar os judeus pelas inclinações intervencionistas do governo de Franklin Roosevelt.
A história americana pode ser narrada como uma alternância entre ciclos internacionalistas, inspirados pela doutrina idealista da “reforma do mundo”, e ciclos isolacionistas, nutridos por uma obsessão de segurança no envelope das
fronteiras da Ilha-Continente. Pearl Harbor, no 7 de dezembro de 1941, assinalou o encerramento do ciclo isolacionista do entreguerras. O ataque químico contra civis perpetrado pelo regime de Bashar Assad, um ato abominável, mas comparativamente secundário, tornou-se um momento definidor para a política externa americana e, talvez, um evento decisivo na reversão do longo ciclo internacionalista. Num país cansado de guerra e traumatizado por um colapso financeiro, Obama foi eleito duas vezes sob o compromisso de direcionar os recursos nacionais para a reconstrução econômica. O dragão adormecido do isolacionismo acorda precisamente nesse cenário. “Muitos pensam que algo deve ser feito”, disse o presidente sobre a Síria, “mas ninguém quer fazê-lo.” Os americanos tampouco querem — mas isso tem consequências.
Obama não ofereceu um cardápio isolacionista no lugar do desastroso cruzadismo dos neoconservadores de George W. Bush. Ele sugeriu uma delicada mescla do realismo geopolítico dos tempos de Henry Kissinger com o liberalismo
internacionalista clintoniano, embrulhando-a na linguagem do multilateralismo. Sua meta é reorientar o poder dos EUA para a Ásia, produzindo uma “virada estratégica” de múltiplas dimensões. A erupção da crise síria representa, aos olhos de Obama, uma distração impertinente. Quando, um ano atrás, o presidente pronunciou as 20 palavras que continham a expressão “linha vermelha”, ele não buscava um pretexto para o envolvimento na Síria, mas um ponto de fuga digno. Hoje, aquela declaração converteu-se numa encruzilhada desafiadora.
“Tem importância não fazer nada”, disse Kerry, um tanto sombrio diante de sondagens que indicam a oposição de três quintos dos americanos a uma ação militar. Contudo, depois do inesperado veto do parlamento britânico a uma resposta armada, Obama recuou um largo passo e decidiu solicitar autorização do Congresso, propondo um bombardeio “muito
limitado”. Sob a tempestade isolacionista, Kerry tentou seduzir os congressistas caracterizando a planejada operação como “inacreditavelmente diminuta” — uma sentença “inacreditavelmente contraproducente”, nas palavras do senador
John McCain. Os adjetivos selecionados remetem à estranha ideia de uso simbólico do poder militar, escancarando o dilema de um policial do mundo que não consegue esconder seu desejo de passar o domingo em casa.
Na terça à noite, a desolação estampada na face, Obama citou Roosevelt, o antecessor que enfrentou o isolacionismo, para falar dos “ideais e princípios que valorizamos” enquanto circundava uma derrota anunciada no Congresso apontando a improvável hipótese de saída diplomática engendrada pelos russos. A passagem foi precedida por uma indagação, que permaneceu reverberando no ar: “Em que tipo de mundo viveremos se os EUA vêem um ditador violar descaradamente o direito internacional com gás venenoso e preferem virar o rosto para outro lado?”.
A ordem internacional existente, com suas instituições de segurança coletiva, seus regimes de controle de armas de destruição em massa e seus instrumentos de dissuasão de genocídios, massacres e crimes de guerra está consagrada
nas Nações Unidas e numa coleção de tratados diplomáticos. Mas esse edifício político e jurídico assenta-se sobre o chão da história — isto é, no internacionalismo americano do pós-guerra. Um recuo dos EUA para a casamata do isolacionismo transformaria as instituições internacionais em caixas vazias, e os tratados solenes em palavras inúteis rabiscadas sobre o papel. No fim, é isso que está em jogo na Síria.
Fonte: O Globo, 12/09/2013
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