*Thais Diniz
O crescimento das apostas esportivas online nos últimos anos tem gerado impactos significativos no cenário econômico e social do Brasil, especialmente para as famílias de baixa renda. Em agosto de 2024, o Banco Central divulgou que cerca de R$ 3 bilhões — equivalentes a 21% do montante do Bolsa Família no mês — foram redirecionados para sites de apostas. Esses números apresentam um desvio preocupante dos objetivos sociais do programa, evidenciando como recursos importantes acabam sendo absorvidos pelos jogos de azar ao invés de atenderem necessidades básicas.
Instituído em 2003, o Bolsa Família destaca-se como uma política social de inspiração liberal, cuja premissa central é transferir a decisão sobre o uso dos recursos diretamente aos beneficiário, com o intuito de diminuir a desigualdade social no país. Embora os recursos permaneçam públicos, a decisão sobre o que comprar é privatizada, permitindo que as famílias de baixa renda atuem no mercado de forma autônoma e responsiva às suas necessidades imediatas, como alimentação, saúde e educação.
Essa abordagem remete à ideia de Milton Friedman, que, em “Capitalismo e Liberdade” (1962), defendeu o conceito do “imposto de renda negativo”. Segundo Friedman, pessoas com rendimentos abaixo de um determinado patamar não deveriam pagar impostos, mas sim receber uma quantia do governo para que escolhessem livremente como gastar seus recursos. Assim, o Bolsa Família foi concebido para reduzir a burocracia estatal e promover a responsabilidade individual, permitindo que os próprios beneficiários decidam como melhor suprir suas necessidades, em vez de terem benefícios já prescritos pelo Estado.
Para ilustrar o impacto das apostas digitais, imagine uma família que recebe R$ 600 mensais do Bolsa Família, valor mínimo garantido pelo programa. Se essa família direcionar 20% desse benefício para apostas online — percentual observado em estudos recentes — isso representa aproximadamente R$ 120 por mês.
Quando os recursos destinados à segurança alimentar, à saúde e à educação são redirecionados para apostas, o consumo essencial sofre um impacto imediato. Além disso, essa redução do consumo afeta diretamente outros setores da economia, como atacadistas, supermercados e mercados em geral, que dependem da renda das famílias de baixa renda para manter o volume de vendas. O resultado é um enfraquecimento do orçamento doméstico, onde, em vez de investir em itens que proporcionem uma base sólida para o desenvolvimento, os recursos se perdem em promessas de ganhos rápidos que, na prática, se traduzem em prejuízos reais para as famílias.
Em um cenário onde cada real investido no desenvolvimento humano representa um passo rumo à ascensão social, a perda desses recursos perpetua um ciclo vicioso de vulnerabilidade e dependência. A promessa de independência financeira e autonomia, defendida por iniciativas liberais, é corroída pela realidade de que o desvio para apostas impede a formação de uma base sólida para o crescimento econômico e social.
Em agosto de 2024, os sites de apostas online no Brasil receberam aproximadamente R$ 20,8 bilhões em transferências, um montante que supera significativamente a arrecadação de outras modalidades de jogos oficiais. Esse cenário evidencia a concentração de ganhos nas mãos das operadoras — muitas de origem internacional — e dos influenciadores digitais que promovem essas plataformas, recebendo cachês milionários por suas participações. Alguns contratos incluem adiantamentos substanciais e comissões significativas sobre as perdas dos jogadores que eles indicam. Indiretamente, o próprio governo também se beneficia da arrecadação tributária decorrente desse segmento. Com a regulamentação desse mercado, a estimativa é de que ele gere até R$ 20 bilhões em impostos e taxas a partir de 2025, ampliando ainda mais o impacto econômico desse setor.
Já em 2023, aproximadamente 14% dos brasileiros, equivalente a 22 milhões de pessoas, realizaram ao menos uma aposta online. Em contraste, apenas 2% da população investiu em produtos financeiros como ações, títulos públicos ou previdência privada no mesmo período. Esses dados ressaltam a necessidade de ações que promovam a educação financeira e incentivem investimentos que se sustentem, especialmente entre as populações mais vulneráveis.
O efeito é duplo: por um lado, a lógica dos jogos de azar atrai os mais vulneráveis, levando-os a apostar na esperança de melhorar sua condição financeira, mas resultando, na maioria dos casos, em perdas que agravam sua situação; por outro, os lucros obtidos pelas casas de apostas e os incentivos oferecidos por influenciadores digitais reforçam uma narrativa de enriquecimento rápido, que se distancia cada vez mais da realidade. Além da liberdade de escolha, a influência da publicidade agressiva e a falta de educação financeira contribuem para esse desvio de recursos, incentivando comportamentos de risco sem plena consciência das consequências.
A propaganda agressiva e os testemunhos de ganhos extraordinários criam uma ilusão de prosperidade, mas os números demonstram que a balança está desequilibrada: enquanto os apostadores sofrem perdas contínuas, os lucros se acumulam para poucos, ampliando a distância entre os que enriquecem e os que veem sua capacidade de investir no próprio futuro se esvair.
O descompasso entre os objetivos das iniciativas liberais e os resultados práticos na vida dos beneficiários exige uma reflexão profunda sobre os incentivos promovidos pelo modelo atual. A experiência do Bolsa Família, idealizado para estimular a autonomia e reduzir a intervenção estatal, contrasta fortemente com a realidade em que recursos essenciais são desviados para apostas esportivas, minando a eficácia do programa e comprometendo o desenvolvimento sustentável.
A fragilidade na destinação dos recursos dos programas de transferência de renda expõe um dilema fundamental: como garantir que esses mecanismos cumpram seu propósito de promover autonomia e mobilidade social sem que o Estado precise intervir na liberdade individual dos beneficiários? A tensão entre eficiência econômica e liberdade de escolha se torna evidente diante dos desafios atuais, como a crescente participação de famílias de baixa renda no mercado de apostas. Diante disso, surge a necessidade de repensar os incentivos e os mecanismos de governança desses programas, de forma que equilibrem responsabilidade individual e sustentabilidade fiscal. No entanto, qualquer tentativa de reforma enfrenta um obstáculo central: até que ponto é possível redesenhar esses instrumentos sem comprometer a liberdade que os justifica?
Thais Diniz é bacharel em ciências humanas e economista; coordenadora de produto na Brasil Paralelo.