Como certas doenças, existem tempos que não passam. São intermináveis como este nosso 2016 — certamente, um clássico desta categoria, próximo do que foi 1968, celebrizado por Zuenir Ventura num belo livro.
Os tempos não passam quando neles ocorrem eventos desafiadores para as estruturas vigentes. Em 1968 — vivido por mim em Cambridge, Massachusetts — as revoltas estudantis, os assassinatos de Luther King e Robert Kennedy, a luta contra o racismo e a Guerra do Vietnã desafiavam a democracia americana. Num Brasil arrolhado pela ditadura, fazia-se o que era possível.
Quando os fatos não cabem nas gavetas da História, eles viram dramas.
Não passam.
Tal como 1968, esse 2016 explicita os enganos de um Brasil ultraestatizado, radicalizado e incestuosamente assaltado, mas com um sistema legal ainda vivo e capaz de cometer a heresia de enjaular poderosos.
Todo fato chocante vira drama porque perde transitoriedade. Torna-se indigesto, impedindo o trânsito de um tempo que concebemos como passando, como a paisagem do trem que levou Hans Castorp à “Montanha mágica”. Numa cosmologia que estratifica as épocas — Idade das Trevas e da Luz — a passagem do tempo serve como uma prova de evolução. Vamos sempre do atraso para o progresso.
Nesse quadro, tempos que não passam seriam épocas não resolvidas. Como portas abertas, eles deixam que passado se misture com presente, e ambos detenham a esperança de um futuro. Como dizia Thomas Mann, “onde não há transitoriedade — princípio e fim, nascimento e morte, não há tempo.” Mas como fechar ou acabar um ano, se o tempo é como a água de um imenso mar, o qual nos é dado a conhecer por um instante? Nele navegamos e nele sucumbimos. Dividi-lo, diz Mann, é arbitrário. É como tentar fatiar água, como temos feito com as leis nesse Brasil de 2016.
Sem diques, viramos náufragos do nosso legalismo, do nosso formalismo e do nosso cuidado em não fechar etapas. Aos fechamentos, preferimos os acordos e harmonizações, cujo centro são cargos apossados por pessoas, e não pessoas a serviço dos cargos, honrando-os e não se utilizando deles para projetos particulares, ou ideológicos. Sem um mínimo de sincronia entre pessoas e cargos, não há como estancar poderes e fechar temporalidades. Pois se as leis têm dia e ano, as amizades e as considerações são variáveis, flexíveis e perpétuas.
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Numa antiga Harvard, Richard Moneygrand fazia uma palestra sobre os valores políticos brasileiros. Em vez de citar os usuais suspeitos — Maquiavel, Marx, Hobbes, Locke, Habermas… —, falou na teoria da oferenda e da reciprocidade de Marcel Mauss. Abriu espaço para discorrer sobre uma história social que lhe parecia singular porque nela havia um conflito reprimido entre “laços de lealdade devido a pessoas”, os famosos “elos de favor, contrafavor e amizade” e leis universais impessoais juridicamente válidas para todos. O Brasil, dizia o conferencista, constituía um caso no qual a nação (ou o país) era administrado por meio de regras de caráter universal, mas a sociedade continuava a ser motivada por simpatias particularistas. O problema era que poucos viam o poder das normas sociais. Disso resultava uma instabilidade permanente, como, de resto, ocorria no mundo latino.
Essa palestra inspirou “Carnavais, malandros e heróis”, dando-me a motivação para sugerir que o “Você sabe com quem está falando?” era uma reivindicação (ou uma eclosão) particularista de cunho aristocrático em situações de igualdade. Eis um evento saudoso da estrutura que o modelava. Nele, o cidadão sujeito da lei geral aparecia subitamente como alguém muito bem relacionado e, assim, livre para descumpri-la. As leis se aplicam a todos, mas dependem de quem se está falando…
O delito importa, mas ele está amarrado a que quem o comete. Todo particularismo reage ou se acultura diante do universalismo em todo lugar. Daí os dilemas do liberalismo que, a todo momento, são forçados a ajustar leis impessoais a novos momentos históricos, algo que temos sido incapazes de realizar. No Brasil, inventamos o jeitinho (estudado por Livia Barbosa num livro clássico) e o “Sabe com quem está falando?”. Ambos reativam particularismos num mundo legalmente construído por individuos-cidadãos sem idade, sexo, cor ou família.
Nessa mesma ocasião, cunhei a expressão “sociedade relacional” para definir sistemas nos quais havia uma incerteza básica entre julgar individualmente ou fazê-lo levando em conta seus cargos e relações.
Aí estava o centro, o ponto de fuga de quem virava “figura” numa sociedade marcada pela subordinação. Hoje, graças à Lava-Jato, sabemos que o capital político relacional transformou-se também num rico empreendimento financeiro. Dizem que é o capital que tudo controla mas, na verdade, são esses elos hierárquicos que têm domesticado e englobado o capitalismo, dando-lhe uma feição compradesca e populista.
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Ao fim dessa palestra, Moneygrand disse algo que jamais esqueci: “Se você quiser comprender o poder no Brasil, não estude partidos, estude pessoas!
Fonte: O Globo, 14/12/2016.
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