No meu último artigo, tentei demonstrar que a emergência de uma sociedade civilizada e próspera dependia menos de um código legal e normativo extenso e detalhado, e mais de normas informais que traduzissem certos valores e princípios morais universais.
Hoje eu gostaria de aprofundar o argumento, explicando por que o excesso de leis e normas, longe de resultar numa sociedade ordeira e próspera, pode causar justamente o efeito contrário.
A sanha do legislativo em Pindorama, por exemplo, é tão grande que, desde a promulgação da Constituição de 1988, já foram editadas mais de 5,4 milhões de normas, o que torna humanamente impossível aos cidadãos cumpri-las em sua totalidade, assim como às autoridades responsáveis fiscalizar o seu cumprimento. É tanta regulamentação que não seria exagero dizer que todos os brasileiros adultos já violaram alguma norma municipal, estadual ou federal em algum momento.
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Mas o problema não termina aí. Como os agentes da lei jamais conseguirão fiscalizar tudo e todos, automaticamente passam a exercer enorme discricionariedade sobre quais leis devem ser impostas, quem deve ser fiscalizado e quais infratores processados.
Esse fato tem conseqüências terríveis em relação ao Estado de Direito e ao Império da Lei, especialmente no que concerne ao princípio da isonomia, segundo o qual todos são iguais perante a lei. Na verdade, a verificação das infrações depende muito mais de uma escolha deliberada e arbitrária do agente da lei do que de qualquer aplicação objetiva das regras vigentes. Assim, a igualdade de todos perante a lei é, em grande medida, suplantada pelo arbítrio de determinados indivíduos, empoleirados em postos chave. Em outras palavras, as autoridades instituídas têm o poder de decidir quais das incontáveis normas vigentes serão impostas a quem e quando.
Tudo isso poderia ser evitado ou pelo menos minimizado se os nossos legisladores, antes de editar uma nova norma, procurassem diferenciar nossas ações segundo dois conceitos legais, herdados da “Common Law”, segundo os quais as eventuais ações delituosas devem ser classificadas de duas maneiras: determinados atos são considerados males “per se” (do latim malum in se) – p. ex. assassinato, roubo, fraude, estupro. Outros se classificam como males por força de proibições impostas pelos legisladores (do latim malum prohibitum) – p. ex. exercer um ofício sem a respectiva licença, dirigir sem cinto de segurança, consumir drogas, ter uma arma em casa, etc.
A identificação de um mal “per se” ou, em outras palavras, a distinção entre o que é certo e o que é errado não depende de nenhuma lei que o defina como tal. Esse tipo de ação é errada não porque o Estado assim determina, mas porque entendemos que é errada em si mesma. Se, por exemplo, o estupro fosse apagado do código penal, continuaria sendo inaceitável pela sociedade e, de alguma maneira, punido por ela.
Por outro lado, as pessoas que cometem ações do tipo “malum prohibitum”, são considerados infratores apenas porque o legislador assim determinou, e raramente são indivíduos socialmente perigosos, como os que cometem ações “malum in se”.
Ora, sabemos que o Estado pode declarar praticamente tudo que quiser “ilegal”. Portanto, se não houver distinção entre as ações que são intrinsecamente más e aquelas que são delituosas apenas por força da vontade do legislador, fica difícil diferenciar as pessoas verdadeiramente nocivas para a sociedade daquelas meramente prejudiciais para o Estado.
Considere as ações corajosas de Oskar Schindler para salvar 1.200 judeus da execução pelos nazistas. Se ele tivesse sido pego, os agentes de Hitler o teriam condenado à pena capital. Entretanto, é óbvio que ele merece todos os elogios do mundo por ter violado os comandos do seu governo.
O caso de Schindler é extremo, sem dúvida, mas, se pensarmos apenas por um instante, deduziremos que muitos dos crimes e contravenções derivados de ações “malum proibitum” não comprometem os direitos individuais de ninguém. Portanto, sequer deveriam ser objeto de leis, normas ou regulamentos que projetassem punições sobre comportamentos inofensivos, que não prejudicam terceiros e só são criminalizados porque a volúpia de políticos e burocratas para ditar normas sobre a vida alheia parece ser incontrolável.
Fonte: “Instituto Liberal”, 15/12/2017
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