Quase dois anos depois do surgimento do coronavírus, o futuro da economia mundial continua sendo redefinido. Em 2020, não só a economia global entrou em recessão, como o comércio internacional e os investimentos estrangeiros diretos colapsaram. Um dos efeitos colaterais mais relevante das restrições à mobilidade foi a interrupção das cadeias globais de produção.
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Riscos à recuperação
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Vista em um primeiro momento como temporária e reversível, a normalização do suprimento de insumos não é mais esperada antes de meados do ano que vem. As restrições de oferta em um ambiente de elevados estímulos fiscais e monetários adicionam pressão sobre a inflação e, ao mesmo tempo, impedem a recuperação de diversos setores. Há, portanto, um risco não desprezível de impactos “estagflacionários” no mundo.
É verdade que as respostas dos governos aos surtos de contágios relacionados às novas variantes do vírus causam sucessivas ondas de interrupções no fornecimento de matérias-primas, mas já podemos identificar algumas evidências que sugerem que forças de longo prazo também podem estar em jogo.
O ponto-chave é que mesmo fatores transitórios (como o fechamento frequente de portos) têm levado várias empresas a revisar a gestão de sua cadeia de insumos para reduzir custos operacionais, mesmo ao custo de perda da eficiência. Países como os EUA não só têm dado suporte como também incentivo a tais iniciativas com políticas específicas.
A Ordem Executiva 14017 (America’s Supply Chains), assinada em fevereiro deste ano por Joe Biden, teve apoio bipartidário. A medida, recomenda a prevalência da produção norte-americana em vários setores assim como a diversificação de fornecedores. Já a União Européia destinou parte de seu fundo de estímulo fiscal para apoiar a fabricação de semicondutores no continente.
Seria um tanto quanto ingênuo presumir que questões geopolíticas e a disputa pela supremacia tecnológica nada têm a ver com as motivações por trás de intervenções como essas. No entanto, o fato é que a pandemia provavelmente acelerará a transformação da produção global.
A Unctad argumenta que a transferência da produção externa para a doméstica, a maior diversificação de parceiros comerciais e a regionalização das etapas produtivas conduzirão a uma revolução nos próximos anos. O investimento não terá mais como prioridade localizações que ofereçam baixo custo e sim segurança.
Novos riscos sistêmicos, como o risco de cibersegurança, têm potencial de impactar sobremaneira o abastecimento de importante insumos, como foi o caso do oleoduto americano esse ano.
Não menos importante, a pandemia também tem causado mudanças no mercado de trabalho, com reflexos no reestabelecimento dessas cadeias.
A escassez de determinados tipos de mão de obra parece ser um problema que vai muito além das restrições à mobilidade. Não são poucas as empresas que estão sendo obrigadas a operar abaixo da capacidade e com pressões por aumento de salários. Indicadores recentes sugerem que mesmo a reabertura das escolas e o término de políticas de apoio ao desemprego dificilmente levarão a um salto na participação da força de trabalho em vários países
A frustração com a volta lenta das atividades presenciais, as preocupações com a saúde e as novas oportunidades de trabalho remoto contribuem para que vários trabalhadores busquem agora carreiras mais flexíveis. A escassez de caminhoneiros nos EUA e na Europa é um exemplos de como a oferta de bens e serviços pode demorar para voltar à normalidade.
Mesmo salários maiores não parecem mudar a disposição destes em buscar um estilo de vida melhor. Sendo a indústria de transporte um dos elos mais essenciais das cadeias de produção, o congestionamento em portos, armazéns e terminais ferroviários passou a ser via de regra em vários países.
Apesar desses processos em curso, a maioria dos formuladores de políticas continuam a afirmar que os desequilíbrios de oferta e demanda são fatores transitórios a serem resolvidos pelas forças do mercado. O tema estrutural dominante após a crise financeira de 2008 —a demanda agregada deficiente— agora dá lugar às frustrações com a capacidade da oferta.
Não é desprezível o risco de os bancos centrais terem de apertar suas políticas monetárias em decorrência das alterações que a quebra das cadeias produtivas está causando na alocação do trabalho e do capital. Como os brasileiros bem sabem, a inflação pode ser mais persistente, mesmo quando sua causa não é uma demanda pujante.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 22/09/2021
Foto: Reprodução