Segundo muitos juristas, o Supremo Tribunal Federal está há mais seis meses descumprindo a lei e a Constituição Federal no caso do inquérito sobre as fake news.
Indignados com as críticas à corte, o STF, sem ouvir o Ministério Público, tem:
a) censurado a imprensa, caso de O Antagonista e da Crusoé, que noticiaram a ligação entre o presidente do STF e a Odebrecht (o “amigo do amigo do meu pai”);
b) ordenado apreensões de computadores e proibições de uso de redes sociais ao redor do país, inclusive contra um general da reserva;
c) demitido fiscais da Receita Federal que investigavam familiares de ministros do STF;
d) ordenado busca e apreensão no escritório de advocacia do ex-procurador-geral Rodrigo Janot com base em um não-crime ocorrido vários anos antes; e
e) investigado em sigilo um número desconhecido de cidadãos.
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Para o ex-ministro do STF Ayres Britto, o Judiciário não pode ser nascente, corrente e foz de um mesmo rio, ou seja, não pode simultaneamente investigar, acusar e julgar, atos que, segundo qualquer ordenamento sério, são competência de órgãos distintos.
O sigilo da investigação agrava o descumprimento do devido processo legal.
Em “O Processo”, de Franz Kafka, o protagonista é detido, acusado e processado por suposto crime de natureza desconhecida, por uma autoridade inacessível e remota.
No Brasil de hoje, quem houver criticado por redes sociais o STF ou seus ministros, pode estar sendo investigado em sigilo.
O STF deveria ser o guardião máximo dos direitos do cidadão e do devido processo legal. Porém detém poder monopolista e a última palavra em temas legais.
Ademais, não sofre controle externo nem pode ter suas determinações revogadas. Como o nome diz, é supremo. Que recurso tem então a sociedade quando o STF se torna arbitrário e autoritário? Afinal, quem vigia os vigilantes?
Em poema satírico do século 2º, Juvenal formulou essa exata pergunta em contexto distinto.
Um marido não sabia como lidar com sua esposa adúltera. Amigos sugeriram uma medida extrema: trancá-la em casa sob vigilância. O marido pressupõe que seria inútil, pois ela escaparia da reclusão cometendo adultério com os vigias. E pergunta “quis custodiet ipsos custodes”?
No caso dos vigias, ao menos o marido pode demiti-los e extinguir a função; no entanto o STF não pode ser extinto nem demitido em bloco.
Os expedientes limitadores ao poder do STF são escassos. A nomeação dos ministros é feita pelo Poder Executivo e aprovada pelo Senado. A previsão de impeachment de um determinado ministro pelo Senado jamais ocorreu.
Essa é uma falha do sistema republicano fundado nos três poderes de Montesquieu, que na teoria serviriam de freio e contrapeso mútuos. Na prática, a enaltecida harmonia entre os Poderes em geral se volta contra o cidadão.
Como indica a teoria dos jogos, um equilíbrio de Nash é formado com acordo simbiótico entre os Poderes, que repassam a conta para o cidadão, cujo único poder formal é um “confirma” a cada quatro anos.
Até o julgamento do mensalão em 2012, o brasileiro em geral não se ocupava em acompanhar ou fiscalizar as decisões do STF. A guinada abrupta nas ideias a partir de então derivou de uma alforria mental que dinamitou a inércia e apatia.
O brasileiro não topa mais delegar seu destino cegamente aos políticos: é menos cordeiro, mais cão vigilante. Com ajuda das redes sociais, o achincalhado “direito de espernear” passou a ter efeito. O STF contra-ataca o esperneio por meio da censura e intimidação.
Faria melhor se criasse juízo e extinguisse imediatamente esse inquérito kafkiano.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 16/10/2019