O depoimento de Marcelo Odebrecht à CPI da Petrobras revela ao país um dos pontos fulcrais de nossa crise moral: uma confusão tão enraizada entre o público e o privado que empresários e agentes públicos muitas vezes perdem a noção do que seja legítimo, isso se considerarmos que as explicações do ex-presidente da maior empreiteira brasileira são sinceras, e não mais uma demonstração de cinismo como tantas que temos visto nos últimos anos.
Além de dizer que não tinha “nada a dedurar”, por sugestão de seu advogado, Marcelo Odebrecht frisou que, além disso, “há questões de valores numa decisão dessas”, e deu um exemplo: “Quando lá em casa minhas meninas brigavam eu perguntava ‘quem fez isso?’ Eu talvez brigasse mais com quem dedurasse”.
É um valor moral ambíguo esse que ele ensina a suas filhas, pois define que é obrigação moral não denunciar mal feitos, ou crimes, como no caso da Petrobras. A decisão de não “dedurar” parte de um princípio mafioso de proteger os amigos, e incorre no mesmo erro da presidente Dilma, que diz que não respeita delatores, quando o que está em questão aqui são crimes contra o patrimônio público.
[su_quote]Basear a recusa à delação premiada em uma justificativa moral chega a ser patético, num ambiente em que a podridão sai pelo ladrão[/su_quote]
O juiz Sérgio Moro, no artigo sobre a Operação Mãos Limpas da Itália, fez um comentário sobre o instituto da delação premiada que repetiu no fim de semana passado em uma palestra: (…) “não se está traindo a pátria ou alguma espécie de “resistência francesa”. Para o juiz, “um criminoso que confessa um crime e revela a participação de outros, embora movido por interesses próprios, colabora com a Justiça e com a aplicação das leis de um país. Se as leis forem justas e democráticas, não há como condenar moralmente a delação; é condenável nesse caso o silêncio”.
Aqui entramos em outra faceta da questão. Marcelo Odebrecht simplesmente não acha que cometeu crimes à frente da Odebrecht, apesar dos inúmeros relatos de companheiros seus de direção de empreiteiras, e o entendimento generalizado de que ele era um dos principais partícipes do esquema de corrupção na Petrobras.
Para ele, a Lava Jato “está gerando desgaste desnecessário para a Petrobras e as empresas nacionais” e “devíamos cuidar melhor tanto da imagem da Petrobras como das empresas nacionais”.
Da mesma maneira, nem ele nem Lula vêem como ilegais a atuação do ex-presidente a favor da Odebrecht em diversos países, com o apoio do BNDES, mesmo quando as condições para os empréstimos não correspondiam às exigências normais das regras do próprio banco estatal. Em certos países, sem crédito internacional, o simples fato de o BNDES dar seu aval é fator decisivo para que a empresa brasileira ganhe a concorrência.
Seriam apenas ações em favor de empresa brasileira, que gera empregos e prestígio para o país. Da mesma maneira, disse que certamente conversou sobre a Petrobras em encontros com a presidente Dilma Rousseff e com o ex-presidente Lula, considerando o fato “mais do que natural”.
A “amizade” entre políticos e empresários leva a que as relações deixem de ser “republicanas” – como Marcelo classificou suas conversas – para se tornarem acordos comerciais informais entre as partes, propiciando desvios de conduta como os que estão sendo desvelados pela Operação Lava-Jato.
Considerar absolutamente natural favores para autoridades é uma denegação da realidade que não resiste à enxurrada de provas e de depoimentos que estão vindo à tona. Basear a recusa à delação premiada em uma justificativa moral chega a ser patético, num ambiente em que a podridão sai pelo ladrão.
Fonte: O Globo, 2/9/2015
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