A cena me foi descrita por uma ouvinte da CBN, quando eu estava no ar na última terça-feira: em São Paulo, na movimentada Avenida Rebouças, num calor de rachar, dois PMs saem de uma “viatura” e confiscam os copinhos de água que um homem vendia aos sedentos motoristas parados no semáforo.
Comércio ilegal reprimido, diz a autoridade. O “rapa”, dizem os ambulantes.
A ouvinte mandou a história como ilustração, pelo avesso, da entrevista que eu fizera naquela mesma terça com o mineiro Elias Tergilene, fundador dos shoppings populares Uai — três unidades em Belo Horizonte e uma em Manaus — e que está tratando da instalação de novas unidades no Rio (Morro do Alemão) e em São Paulo. Seu objetivo, ele conta, é abrir espaço formal para empreendedores populares.
Quem são eles? Os moradores das periferias e favelas que querem, precisam ou já tocam um negócio informal. Associado ao Sebrae e à Fundação Dom Cabral, Tergilene treina e forma essas pessoas para colocá-las na legalidade.
Mas reparem a explicação dele: “Preciso ensinar essas pessoas a ganhar dinheiro para pagar a formalização, para pagar os impostos… Essas pessoas fazem riqueza para o país, não podem ser tratadas como bandidos.”
Sim, a questão não é simples. Imagine que você tem uma loja formal, paga ao contador, ao advogado e os impostos, e um sujeito coloca uma banquinha bem na frente para vender coisa parecida. Concorrência injusta, claro. Não pode.
Ou você vende sanduíches, tendo que pagar também a taxa da vigilância sanitária e dos bombeiros, e um cara começa a assar churrasquinhos bem ao lado. Aí, além de concorrência injusta, há um problema de saúde pública.
Tudo bem, mas por que uma pessoa vai vender copinhos de água em congestionamentos, sob um sol de 35 graus? Porque não encontra serviço que pague mais. Ou porque faz um bico depois do trabalho regular.
Ou porque tem talento, como a dona de casa que começa a vender empadinhas ou biquínis, ou abre um salão nos fundos. Ou como um funcionário de escritório que perde o emprego, recebe a indenização e resolve tentar um negócio de consertos domésticos. Ou como uma moça, boa de internet, que compra dois computadores e instala uma lan house na sala de sua casa.
Situações diferentes exigem respostas diferentes. Nem sempre é o caso de chamar o “rapa” — que aparece na forma de polícia ou fiscal, não raro cobrando pedágio.
E sempre, mas sempre mesmo, será o caso de chamar pessoas como Elias Tergilene. E sempre será o caso de tentar, pela via do setor público, os caminhos que ele toma pela via da iniciativa privada.
Tergilene sabe do que fala. Com a experiência de quem foi camelô e ambulante — começou vendendo de estrume a madeira — ele vai direto ao ponto: tem muito talento por aí, muita gente séria querendo ganhar dinheiro honestamente. Hoje, por exemplo, tem fábrica de móveis e mineração, além do Uai.
Olhando as histórias, pode-se dizer: se o governo não atrapalhar, já está mais que bom. Mas, claro, será bem melhor se o governo e todo o sistema formal puderem apoiar certas iniciativas.
Os shoppings Uai dão dinheiro ao seu fundador. Os lojistas pagam apenas uma taxa de ocupação, nada sobre o faturamento. No ano passado, as quatro unidades faturaram R$ 36 milhões e todo o negócio até aqui foi tocado com capital próprio.
Tergilene diz que seus shoppings misturam atividade econômica e social. Têm o objetivo de desenvolver a economia e o comércio locais, gerando negócios e empregos ali mesmo onde é instalada a unidade. Gasta-se dinheiro para treinar e formar as pessoas.
Mas não consegue financiamento, nem nos programas especiais do BNDES e da Caixa. “Se for enquadrado como shopping, os juros são muito elevados; se não é shopping, é o quê?”, diz ele. Já se fosse um porto em Cuba…
Para as unidades no Rio e em São Paulo, Tergilene está tentando financiamentos públicos e privados, além de parcerias com prefeituras e comunidades locais.
Não deveria ser um caso especial. Governo não gera riqueza. Quem gera riqueza é o setor privado, o empreendedor com seu “espírito animal”. Logo, deve ser a lógica do sistema: pessoas que tenham a iniciativa de produzir e vender coxinhas ou programas de computador precisam ter os caminhos abertos.
Faz um ano da tragédia da boate Kiss, em Santa Maria. Não foi por fatalidade que morreram 242 pessoas. Não é por fatalidade que ninguém tenha sido condenado até agora. O local apresentava várias irregularidades. Está alguma coisa muito errada quando o poder público deixa passar uma situação como essa e “rapa” os copinhos de água de um ambulante.
Fonte: O Globo, 30/01/2014
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