Está lá no jornal: “a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Vereadores de São Paulo aprovou o projeto de isenções fiscais para a construção do Itaquerão. Acredita-se que o projeto pode reduzir em até R$ 420 milhões o custo da obra”. Bem, “Itaquerão”, para quem não sabe, é o novo estádio que está sendo construído para o Sport Club Corinthians Paulista em Itaquera, na capital paulista, onde será realizada a partida inaugural da Copa do Mundo de 2014.
Esta notícia me remete imediatamente a dois autores. O primeiro é o economista francês Frédéric Bastiat, da segunda metade do século XIX. No artigo “O que se vê”, ele nos ensinou que entre um bom e um mau economista existe uma diferença: o último detém-se apenas nos efeitos que se veem, enquanto o primeiro, além dos efeitos visíveis a olho nu, examina também os que se devem prever. Em outro famoso artigo, “A vidraça quebrada”, Bastiat escreve:
“Supondo que seja necessário gastar seis francos para reparar os danos feitos [pela quebra de uma vidraça por parte de um menino], pode-se dizer, com toda justeza, e estou de acordo com isso, que o incidente faz chegar seis francos à indústria de vidros, ocasionando o seu desenvolvimento na proporção de seis francos. O vidraceiro virá, fará o seu serviço, ganhará seis francos, esfregará as mãos de contente e abençoará no fundo de seu coração o garotão levado que quebrou a vidraça. É o que se vê. Mas, se por dedução, chegamos à conclusão, como sói acontecer, de que é bom que se quebrem vidraças, de que isto faz o dinheiro circular, de que daí resulta um efeito propulsor do desenvolvimento da indústria em geral, então eu serei obrigado a exclamar: Alto lá! Essa teoria pára naquilo que se vê, mas não leva em consideração aquilo que não se vê.
Não se vê que, se o nosso burguês gastou seis francos numa determinada coisa, não vai poder gastá-los noutra! Não se vê que, se ele não tivesse nenhuma vidraça para substituir, ele teria trocado, por exemplo, seus sapatos velhos ou posto um livro a mais em sua biblioteca. Enfim, ele teria aplicado seus seis francos em alguma coisa que, agora, não poderá mais comprar.
Façamos, pois, as contas da indústria em geral.
Tendo sido quebrada a vidraça, a fabricação de vidros foi estimulada em seis francos; é o que se vê.
Se a vidraça não tivesse sido quebrada, a fabricação de sapatos (ou de qualquer outra coisa) teria sido estimulada na proporção de seis francos; é o que não se vê.
E se levássemos em consideração o que não se vê, por ser um fato negativo, como também o que se vê, por ser um fato positivo, compreenderíamos que não há nenhum interesse para a indústria em geral, ou para o conjunto do trabalho nacional, o fato de vidraças serem quebradas ou não.
Façamos agora as contas de Jacques Bonhomme [o pai do menino].
Na primeira hipótese, a da vidraça quebrada, ele gasta seis francos e tem nada mais nada menos que antes: o prazer de possuir uma vidraça.
Na segunda hipótese, aquela na qual o incidente não ocorreu, ele teria gastado seis francos em sapatos e teria tido ao mesmo tempo o prazer de possuir um par de sapatos e também uma vidraça.
Ora, como Jacques Bonhomme faz parte da sociedade, deve-se concluir que, considerada no seu conjunto, e fazendo-se o balanço de seus trabalhos e de seus prazeres, a sociedade perdeu o valor relativo à vidraça quebrada.
Daí, generalizando-se, chega-se a esta conclusão inesperada: “A sociedade perde o valor dos objetos inutilmente destruídos” – e se chega também a este aforismo que vai arrepiar os cabelos dos protecionistas: “Quebrar, estragar, dissipar não é estimular o trabalho nacional”, ou mais sucintamente: “Destruição não é lucro”.
O segundo autor a que nos remete a notícia do jornal é Paul Johnson, que, em seu extraordinário livro “Modern Times”, em que relata a história do mundo no século XX, ressalta que os dois piores males dos nossos tempos são “a morte de Deus”, decretada unilateralmente por autores como Hegel, Nietzsche e Marx, que gerou um vácuo na compreensão do mundo, espaço que foi preenchido pela “vontade de poder”, que conduziu ao segundo mal, o do avanço do sistema político sobre o sistema econômico e o sistema ético/moral/cultural. Questões econômicas, que até então eram resolvidas pelo próprio sistema econômico, bem como questões de natureza ética/moral/cultural, que eram solucionadas por esse sistema, passaram a ser “politizadas”. Essa politização da economia, da ética, da moral e da cultura gerou, entre outras, um avanço enorme do estado * sobre os indivíduos e as aberrações do comunismo, do socialismo, do fascismo e do nazismo e ainda continua a gerar, como nos casos do “bolivarianismo” e do “lulopetismo”.
O futebol, que é um esporte e, portanto, faz parte do sistema cultural, não escapou a esse processo de crescente politização. A FIFA, outrora respeitada como modelo de isenção, de caráter especificamente técnico, está atualmente, por conta dessa politização, submergida em acusações de corrupção interna e externa. O mesmo acontece com a CBF. Essas entidades ditam cátedra e impõem suas vontades – a primeira sobre as confederações e até sobre governos e a segunda sobre os clubes -, dos quais sugam não apenas a cereja, mas quase todas as fatias do bolo.
Não tenho nada contra o Corinthians nem, muito menos, contra os seus torcedores. O mesmo está acontecendo com os soteropolitanos, que serão obrigados a pagar pela construção do novo estádio da Fonte Nova, do Esporte Clube Bahia. Apenas torço contra eles no plano puramente do esporte, assim mesmo quando jogam contra o clube do meu coração, o Fluminense. A minha “torcida”, nos dois casos, é pelos pagadores de tributos** de São Paulo e Salvador, não importando por quais clubes torçam, ou, mesmo, se não torçam por nenhum time. Usar recursos públicos para favorecer entidades privadas, como os clubes, é um exemplo de que há maus economistas (no sentido de Bastiat) ocupando postos importantes e/ou de que a politização a que se refere Paul Johnson está mais forte do que nunca, tanto na capital paulista como na baiana. Minha convicção é que estão acontecendo ambas as coisas.
A partir de 2014, quem passar por Itaquera vai ver, sem dúvida, um belo e moderno estádio de futebol, ou, como se gosta de dizer hoje, uma esplêndida “arena”. De fato, é o que se verá. Mas o que não se verá – embora possa ser previsto hoje – são escolas, hospitais, creches, delegacias, etc., que poderiam ser construídas com os R$ 420 milhões que o governo municipal de São Paulo arrecadou dos pagadores de tributos, mas que não serão construídos porque o mesmo governo – cujo prefeito jurou, há cerca de um ano, que não usaria sequer um centavo de recursos públicos para bancar o estádio – preferiu gastá-los exatamente em que? Ora, no estádio do Corinthians… Mutatis mutandis, o mesmo acontecerá na capital da Bahia.
O argumento de que essas obras gerarão um “efeito multiplicador”, empregando pessoas e favorecendo o desenvolvimento de novos estabelecimentos comerciais na região, não se sustenta. Primeiro, porque o tal “efeito multiplicador” é uma falácia keynesiana; segundo, porque pessoas também seriam empregadas caso o governo, ao invés do estádio, construísse, digamos, um viaduto; e terceiro, porque esses empregos são temporários. Quem conhece o “Engenhão”, no bairro do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, e passa hoje por lá, pode verificar imediatamente que o “efeito multiplicador”, se passou, passou bem longe, porque os arredores do estádio são rigorosamente os mesmos, em termos de infra-estrutura, transportes e estabelecimentos comerciais, de antes da construção do estádio, um elefante branco que a prefeitura carioca acabou arrendando ao Botafogo de Futebol e Regatas. Os economistas, desde a primeira aula nos cursos de graduação, aprendem a lei da escassez, mas os políticos tentam sistematicamente aboli-la…
Parece evidente que as decisões de construir o “Itaquerão” e o novo estádio do E. C. Bahia foram decisões políticas, em que se misturaram interesses da FIFA, da CBF, dos clubes beneficiados e, evidentemente, das construtoras. Será que, se o ex-presidente e ex-metalúrgico, que é “curintiano” (uso aqui a linguagem de sua excelência), torcesse, digamos, pela Portuguesa de Desportos ou pelo Juventus, haveria recursos públicos para ajudar os clubes do Canindé e da Rua Javari? Do jeito como as coisas funcionam, creio que haveria.
A decisão da CCJ da Câmara de Vereadores de São Paulo, de autorizar o emprego do dinheiro dos pagadores de tributos em estádios de clubes privados é uma afronta a quem é forçado a pagar tributos. Aliás, não é função do estado construir estádios de futebol, nem muito menos mantê-los. Além de escaparem às funções do estado, essas obras são um convite à corrupção. As obras de restauração do Maracanã, no Rio, são outra afronta aos pagadores de tributos fluminenses. E todas as outras que estão sendo feitas pelo Brasil afora. Ah, a lei da escassez… Quando vão conseguir compreendê-la? O governo da Grécia está começando, ao que parece, a tomar conhecimento dela…
Enfim, salve o Corinthians, como canta o belo hino dos “mosqueteiros”. Mas que se danem os pagadores de tributos…
* Passei a grafar a palavra “estado” com “e” minúsculo. Entre a gramática e a realidade de opressão do estado sobre o indivíduo, é melhor agir assim.
** Aboli de meu dicionário a palavra “contribuinte”, substituindo-a pela expressão “pagador de tributos”.
Caro Ubiratan,
Você arrebentou a boca do balão.Admiro muito a maneira como
você aborda, com uma linguagem simples e precisa, as mazelas
que nos afligem nesta Bruzundanga do indefectível Lima Barreto.
Lucidíssimo!