Drama da censura prévia se converte em receio por censura posterior se a lei das biografias for aprovada como está hoje
Se o projeto de lei que muda as regras para o lançamento de biografias no país tivesse forma, ela seria a de uma jabuticaba. Esta é a visão do senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES), nomeado o relator do tema no Senado. Nos próximos dias, Ferraço vai apresentar seu relatório à Constituição de Comissão e Justiça da Casa (CCJ). O projeto vai passar então por uma primeira votação na CCJ, seguir para o plenário e, se nada for modificado, chegar à mesa da Presidência da República, onde deverá ser sancionado para entrar em vigor.
Segundo o senador Ferraço, o nó está aqui: se o projeto passar como está, pode trocar a censura prévia, como é considerado hoje o poder de veto dos herdeiros e dos próprios biografados a livros não autorizados por eles, por uma “censura posterior”, com a nova determinação de se retirar trechos da obra já publicada. Se algo for modificado no texto, ele tem de voltar para a Câmara dos Deputados, retomando todo o trâmite a perder de vista.
Antes de sair da Câmara dos Deputados, o projeto recebeu uma emenda de autoria do deputado federal Ronaldo Caiado (DEM-GO), prevendo uma maior agilidade no rito processual apenas dos episódios contestados. Se a Justiça decidir a favor do biografado, o trecho do livro deverá ser retirado em uma próxima edição. “Esse é o debate que estamos fazendo, não temos certeza da opção que faremos. Podemos avançar, mesmo com a emenda, o que pode representar a censura posterior”, diz Ferraço. “O ótimo pode ser inimigo do bom”, completa o senador, em uma menção à estratégia de deixar o texto como está para que ele passe.
Caiado discorda do termo “censura posterior”. “Eu gostaria de entender o que o fez pensar assim. Eu tenho até uma boa imagem do senador, mas isso pode mostrar que ele não tem nenhum conhecimento da matéria”, diz, reforçando que o centro da emenda é a garantia de uma maior celeridade da Justiça. Com ele, diz o deputado, julgamentos que levam mais de 20 anos poderiam ser reduzidos a dois.
Mas não é apenas o senador Ferraço quem pensa assim. Alguns biógrafos e editores se mostram resistentes à retirada dos trechos. Paulo Cesar de Araújo, biógrafo interditado de Roberto Carlos e autor de “O Réu e o Rei”, no qual conta os bastidores do maior caso de censura a uma biografia no país, demonstra desconfiança, mas prefere que o projeto siga como está. “O ideal seria acabar com a censura prévia sem o risco da ‘censura póstuma’. Não sendo possível, vamos então acabar com a censura prévia e depois brigar contra a ‘censura póstuma’.”
Vice-presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Roberto Feith diz que a emenda de Caiado é “um equívoco por misturar princípios com processos”. “A lei que regula a liberdade de expressão deve ser elaborada com base nos princípios que regem a questão, fundamental para uma sociedade democrática. A lei não deve, ao mesmo tempo, tentar regular como o judiciário funciona, questão totalmente diferente, circunstancial e que deve ser decidida com a participação do próprio judiciário.”
Feith acredita que o texto do deputado pode trazer interpretações confusas. “A redação cria o risco de interpretações diversas na primeira instância do judiciário. Foi exatamente isso que aconteceu com o artigo 20 do Código Civil que, inadvertidamente, terminou por censurar as biografias independentes. O artigo foi elaborado para regular o uso de fotos, filmes e publicidade na TV, mas foi redigido de modo ambíguo, dando margem a que fosse interpretado como legitimando a proibição de biografias.” E continua: “Não podemos repetir este erro. Uma questão com esta não pode ficar sujeita a gatilhos legais e interpretações variáveis”. Ele reconhece a preocupação do deputado com a agilidade do julgamento, mas pondera: “Esta agilidade não deve ser exclusiva de um outro assunto e deveria ser buscada com medidas equilibradas, como a aprovação da súmula vinculante”, diz, referindo-se à atual Ação Direta de Inconstitucionalidade sobre o mesmo tema que o Supremo Tribunal Federal tem em mãos para votar.
A empresária Paula Lavigne, que representou artistas do “Procure Saber” contrários à publicação indiscriminada de biografias, como Roberto Carlos, Gilberto Gil e Djavan, falou com o Estado. “Para ser sincera, eu nunca fui a favor de se ter autorização, mas sim de discutirmos os limites da privacidade. Mas o debate foi impossível. Agora é tarde. Vamos ver o que vai acontecer com a falta de clareza nas regras.”
Fonte: O Estado de S. Paulo
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