Joel Pinheiro da Fonseca escreveu um belo artigo desmistificando o conceito de “meritocracia”, não raro utilizado por liberais de forma equivocada e sem as necessárias ressalvas. Com razão, Joel aponta que, numa economia de livre mercado, frequentemente não é o mérito pessoal – pelo menos não como amplamente definido nos dicionários – que determina o sucesso ou fracasso de alguém, mas a criação de valor. Nas palavras do próprio Joel:
“Satisfaça as necessidades dos outros, e as suas serão satisfeitas. Não importa se é por mérito, por sorte ou por talento. O cara mais esforçado e bem-intencionado do mundo, se não criar valor, ficará de mãos vazias.
Achou injusto? Então aqui vai um segredo: é você quem perpetua esse sistema. Se sua geladeira quebra, você vai querer um técnico esforçado e que dê tudo de si, ou vai querer um que faça um ótimo serviço, com pouco esforço e a um baixo custo? Quer um restaurante ruim, mas com funcionários esforçados ou quer comer bem? O mundo reflete o seu código de valores e, veja só, ele não é meritocrático.
(…)
O ideal da meritocracia tem o seu apelo, mas ele depende de meias-verdades: a ideia do mérito que é só meu e de mais ninguém, a de que meu suor justifica o que eu ganhei. Sem suor ou inteligência, o ganho é sujo, indevido. Mas o outro lado dessa moeda é feio: implica dizer que quem não chegou lá não teve mérito; que a pobreza é culpa do pobre.
A lógica do mercado é outra: você criou valor, será recompensado. Sua riqueza não diz nada sobre o seu mérito; ela não justifica e nem precisa ser justificada. O resultado desse foco no valor é que mais valor é criado. Você recebe aquilo que entrega e todos ganham.”
Joel está corretíssimo. No entanto, gostaria de pontuar que, quando nós liberais nos referimos a uma sociedade meritocrática, estamos falando de um conceito de mérito diferente do usual. Um conceito ligado muito mais à isonomia (igualdade perante a lei), à ausência de privilégios de qualquer tipo. Não por acaso, é bom lembrar, a ideia de meritocracia disseminou-se inicialmente na Europa, durante o iluminismo, como uma alternativa ao “Ancien Régime”.
De fato, como escrevi alhures, na sua acepção mais comum, o mérito está intimamente ligado a esforço, empenho, dedicação, suor e até lágrimas. Embora tais qualidades sejam moralmente elevadas, não são suficientes para determinar o sucesso ou fracasso de ninguém. Num arranjo de livre mercado, o êxito individual é derivado principalmente de um tipo de mérito diferente, intimamente relacionado com produtividade, com resultado, com eficiência para satisfazer os desejos e necessidades dos outros e, principalmente, com a ausência de privilégios e vantagens indevidas, impostas de forma coercitiva sobre os indivíduos.
Embora essa não seja a norma, alguns enriquecem sem ter sequer estudado, e não necessariamente através do esporte ou das artes, como é mais comum nesses casos. Vários empreendedores são ou foram semianalfabetos, mas descobriram a fórmula mágica de satisfazer os consumidores. Por outro lado, não são raros os indivíduos extremamente letrados e dedicados que mal conseguem obter o suficiente para viver com conforto. Na verdade, esforço e dedicação, embora sejam virtudes altamente meritórias e bem vindas em qualquer sociedade civilizada, podem desaguar num completo desastre econômico, enquanto o sucesso pode ser resultado fortuito de um acidente ou de condições inatas, sobre as quais não há qualquer controle ou vontade.
Profissionalmente, quase todos nós agimos com vista a alcançar os melhores resultados econômicos possíveis. Ocorre que estes resultados dependem principalmente da avaliação que os outros fazem do produto do nosso trabalho. Portanto, o preço e a quantidade demandada de determinada mercadoria ou serviço independem do esforço realizado na sua produção, mas de fatores outros, como gosto (subjetividade) do consumidor e escassez.
É o mercado (a sociedade) quem livremente decide avaliar um craque de futebol, por exemplo, com mais generosidade que um dedicado professor, de acordo com as leis econômicas da escassez e de oferta e demanda. O futebolista, malgrado exerça uma atividade para a qual seus dotes naturais muitas vezes superam em muito seus esforços e dedicação, vende algo raro e, gostemos ou não disso, demandado por milhões de consumidores concomitantemente – seja através da compra de ingressos, de camisas, de assinaturas de TV, ou de produtos por ele propagandeados. Já o professor, embora majoritariamente visto como um sujeito esforçado e abnegado, que exerce uma atividade considerada nobre e extremamente importante para os destinos da sociedade, muitas vezes não consegue ir muito longe na escala social, pois o universo de seus consumidores é muito mais restrito e a concorrência muito maior.
A meritocracia de que nós liberais normalmente falamos, portanto, é esta: ausência de privilégios, ausência de tratamento diferenciado para igualar desiguais, em síntese, ausência de interferência externa, especialmente do governo, na tentativa reparar supostas injustiças, derivadas exatamente do fato de que, na vida, os resultados não têm necessariamente relação com esforço, determinação e outras virtudes nobres. Até porque, como inferiu Hayek, uma sociedade na qual a posição social dos indivíduos está ligada à ideia de mérito moral – e não econômico – seria o exato oposto de uma sociedade livre.
Fonte: Instituto Liberal, 22/10/2015.
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